O cangaço existe desde antes do início do século 18, tempo
em que o sertão nordestino ainda não havia sido desbravado. Os jagunços eram
boiadeiros que passavam a exercer um estilo de vida miliciano e se
transformavam em guarda-costas dos fazendeiros ou dos senhores-de-engenho da
região. Foram os jagunços que deram origem ao cangaço.
Segundo Nina Rodrigues, no livro “As Coletividades Anormais”
(Civilização Brasileira, 1939), “não é jagunço todo e qualquer mestiço
brasileiro: jagunço é o mestiço do sertão, que tem as características dos seus
ascendentes selvagens – índios ou negros. No jagunço se revelam inteiros o
caráter indomável do índio selvagem, o gosto pela vida errante e nômade, a
resistência aos sofrimentos físicos, à fome, à sede, às intempéries”.
Já os “cabras”, como ficaram conhecidos os cangaceiros de
Lampião, são mestiços de mulato ou moreno, esse que por sua vez é filho de pai
branco e mãe negra ou vice-versa, dando origem ao mestiço “cabra”, o filho de
moreno e negro.
Em linhas gerais, jagunço ou capanga era todo o indivíduo
que empunhava uma arma para defender a si próprio, aos seus bens ou à sua
família e que, a partir do primeiro crime cometido, passava a ser usado e
protegido pelos chefes políticos “(...) que então, se tornavam mais respeitados
pela gentalha e mais desejados pelos governantes”.
O Capitão Virgulino Ferreira da Silva, considerado o
cangaceiro mais famoso da História, nasceu na cidade de Vila Bela (atual Serra
Talhada), no semiárido de Pernambuco, no dia 4 de junho de 1898, mas o seu
nascimento só foi registrado no dia 7 de agosto de 1900. Foi o terceiro dos
oito filhos de José Ferreira da Silva e Maria Lopes de Oliveira.
Até os 21 anos de idade, ele trabalhava como artesão, era
alfabetizado e usava óculos para leitura, características incomuns para a
região sertaneja e pobre onde ele morava. Continuou a usar óculos já como
cangaceiro quando teve o olho direito furado por um galho seco de arbusto ao
fugir correndo pela caatinga. Por seu pai ter sido morto por um vizinho começou
a desavença que culminou com a decisão de Virgulino de incorporar-se ao
cangaço.
O famoso Capitão
Corisco, lugar-tenente de Lampião
Na maioria das vezes, os cangaceiros eram oriundos da lida
com o gado. Tratavam-se de vaqueiros habilidosos, que faziam as próprias
roupas, caçavam e cozinhavam, tocavam o “pé-de-bode” (sanfona de oito baixos)
em dias de festa, trabalhavam com couro, amansavam animais e eram muito
religiosos. Só ingressavam no cangaço por não suportar mais as injustiças
sociais de que eram vítimas.
Os cangaceiros se vestiam com roupas de tecido grosso,
geralmente um tecido entrelaçado de cor ocre (cor de barro, argila), denominado
“gabardine”, semelhante ao tecido do “jeans” utilizado pelos camponeses
norte-americanos ou, em certas empreitadas dentro das caatingas, até com
perneiras, calça e gibão de couro. Calçavam alpercatas e meias grossas de
algodão para se proteger de gravetos e espinhos.
Nas alpercatas (ou “alpragatas”), há referências de que
usavam duas virolas (o altiplano dos solados), uma atrás e a outra na frente,
para que o rastro não indicasse a direção que o bando seguia.
Eles também se moviam em fila indiana pisando sempre na
mesma pisada do que ia na frente e dessa forma também o rastro só mostrava uma
pessoa andando, não se sabendo para qual lado.
Outras vezes, o último cangaceiro da fila indiana caminhava
de costas limpando os rastros do bando com pedaços de plantas.
Os cabras de Lampião usavam chapéus de couro com abas largas
e viradas para cima à moda do chapéu de Napoleão Bonaparte, enfeitados com
estrelas de Davi (cinco pontas) e mandalas feitas de moedas.
Gostavam de lenços no pescoço, de punhais compridos na
cintura, cartucheiras atravessadas ao peito disputando espaço com as cangas, as
bolsas, cabaças, manculões (sacos) e outros suportes, utilizados para
transportar os objetos pessoais, incluindo pentes, espelhos, pós-de-arroz
facial, revistas de moda e atualidades, artefatos de corte e costura, cuias
(pratos feitos da cabaça) e perfume Fleur d’Amour.
O Capitão Virgulino tinha o chapéu idêntico aos chapéus dos
seus “cabras”, à moda napoleônica e com mandalas, mas a sua estrela era a
estrela do Rei Salomão, de seis pontas.
Maria Bonita, Lampião
e o resto da turma
A expressão cangaço está relacionada à palavra canga ou
cangalha: uma junta de madeira que une os bois para o trabalho. Assim como os
bois carregam as cangas para realizar o trabalho de força, os homens que levam
os rifles nas costas começaram a ser chamados de cangaceiros.
Como já foi dito, o cangaço advém do século 18. Já naquela
época, o cangaceiro Jesuíno Brilhante (vulgo “Cabeleira”) ataca o Recife, mas
algum tempo depois é preso e enforcado, em 1786. De Ribeira do Navio, no estado
de Pernambuco, surgem também os cangaceiros Cassemiro Honório e Márcula.
O cangaço passa a se tornar, então, uma profissão lucrativa,
surgindo vários grupos que roubam e matam nas caatingas, destacando-se os
bandos de Zé Pereira, dos irmãos Porcino, de Sebastião Pereira e de Antônio
Quelé. No começo da história, contudo, eles representavam grupos de homens
armados a serviço de coronéis.
Em 1897, surge o primeiro cangaceiro importante, Antônio
Silvino, considerado o “Robin Hood da caatinga”. Com fama de bandido cavalheiro
e bem educado, que respeita e ajuda financeiramente muitas famílias pobres, ele
atua durante 17 anos nos sertões de Alagoas, Pernambuco e Paraíba, até ser
preso pela polícia pernambucana em 1914.
Outro cangaceiro famoso é Sebastião Pereira (chamado de
Sinhô Pereira), que forma o seu bando em 1916 e se torna o primeiro chefe de
Lampião.
Nesse contexto surge a figura do padre Cícero Romão Batista,
que concilia interesses opostos e amortece os conflitos entre as classes
sociais. A religiosidade praticada em torno do padre Cícero representava
“aceitação” das regras políticas e sociais da República.
O cearense Cícero Romão Batista, líder religioso do povo
sertanejo oprimido pelo latifúndio, pelo Estado e por uma Igreja distante e
ausente, nasceu no Crato, em 1844, e faleceu em Juazeiro do Norte, em 1934, aos
90 anos de idade. O “padroeiro do Nordeste”, pessoa influente na região, foi o
fundador de Juazeiro do Norte, em 1872.
Além de orações e bençãos, “Padim Ciço” aconselhava seus
“afilhados” sobre atividades econômicas, doenças, questões familiares,
desavenças e sugeria nomes de candidatos para as eleições.
Participante ativo da política, ele se envolveu diretamente
nas disputas que envolviam mortes e assassinatos entre as oligarquias das
famílias dos coronéis do sertão nordestino, tendo se ligado aos coronéis, aos
jagunços e aos cangaceiros, ao sabor de suas conveniências.
Além de ter sido prefeito, deputado federal e vice-governador,
Padim Ciço ganhou a fama de “milagreiro” e se tornou uma lenda viva para os
sertanejos nordestinos.
Zé Rufino, o primeiro
em pé e à esquerda, junto com os membros de sua volante na época do cangaço
Para combater os cangaceiros, o Poder Público criou os
“esquadrões volantes”, que reuniam ex-militares veteranos da Campanha de
Canudos, policiais civis e jagunços pagos pelos coronéis em grupos de 20 a 60
homens.
Nestas forças policiais quase paramilitares, alguns dos seus
integrantes se disfarçavam de cangaceiros para se misturar no meio da população
e tentar descobrir os esconderijos dos verdadeiros cangaceiros ou identificar
os coiteiros que pudessem dar tais informações.
Os cangaceiros chamavam os “volantes“ de “macacos” por causa
do uniforme de cor marrom usado por eles. A população, entretanto, achava que
eles se chamavam “macacos” porque pulavam como loucos quando viam o bando de
Lampião surgindo na linha do horizonte.
O certo é que pelo fato de não serem benquistos pela
população, os tais “macacos” atuavam com mais ferocidade ainda do que os
próprios cangaceiros, criando um clima de violência extrema em todo o sertão
nordestino.
Entre os cabras de Lampião mais conhecidos estavam Corisco,
José Sereno, Galo, Antônio Pereira, Maritaca, Antônio Marinheiro, Vinte e
Cinco, Ananias, Alagoano, Andorinha, Labareda, Arvoredo, Ângelo Roque, Beleza,
Candeeiro, Beija-Flor, Bom de Veras, Cícero da Costa, Cajueiro, Volta Seca,
Cigano, Cravo Roxo, Cavanhaque, Chumbinho, Cambaio, Criança, Delicadeza,
Damião, Ezequiel, Português, Fogueira, Jararaca, Juriti, Luís Pedro,
Linguarudo, Lagartixa, Moreno, Moita Braba, Mormaço, Ponto Fino, Porqueira,
Pintado, Sete Léguas, Sabino, Trovão, Zé Baiano, Zé Venâncio, Tripa Seca,
Azulão, Riqueza, Canjica, José Baiano, Moita Brava, Zabelê, Barreiras, Asa
Branca, Luís Padre, Incubadora e Baioneta.
Quando um integrante do grupo morria, seu apelido era
adotado por um novato. Essa é uma das razões que faziam os cangaceiros
parecerem invencíveis, pois os nomes eram “imortais”.
Eles também não deixavam a polícia avaliar o resultado dos
combates. Levavam os mortos e, quando não dava, cortavam as cabeças e levavam
com eles, dificultando a identificação.
Para se divertir, os cangaceiros dançavam o xaxado, que deu
origem às nossas conhecidas danças nordestinas – como se o cangaço tivesse sido
transportado para o coração da Amazônia e se transformado em um importante
componente folclórico da região.
A dança do xaxado é uma representação do trabalho de fazer o
plantio da semente no chão, prática comum entre os sertanejos nordestinos desde
tempos imemoriais.
Tanto nas pequenas propriedades rurais quanto nos
latifúndios, duas pessoas, durante muitas horas, conforme a extensão do tamanho
do roçado, realizavam manualmente a plantação do feijão ou do milho: uma andava
na frente e cavava o buraco com uma enxada e a outra, que vinha atrás levando a
tiracolo um “manculão” (saco de pano contendo as sementes), com a mão lançava a
semente dentro do buraco e com o pé afofava a terra.
Os movimentos do xaxado são os de balanceio do corpo em
direção ao solo e o lançamento da perna para frente o que corresponde aos atos
de cavar a terra e lançar a semente.
É uma lembrança feliz dos tempos em que há inverno e todo
sertanejo, homem ou mulher, trabalha o plantio.
Eles xaxavam o feijão ou o milho, e xaxar, também chamado
“afofar”, é aconchegar a terra com o pé para junto do caule fincado no chão
para proteger o broto.
O xaxado é tido como uma dança masculina, na qual não se
usam nenhum instrumento musical, somente vozes, palmas e batidas dos pés para
marcar o compasso.
Os cangaceiros eram ex-agricultores e ex-vaqueiros e,
evidentemente, também se lembravam dos rituais utilizados na época das
plantações e colheitas nos sítios do torrão natal.
Por isso, para se divertirem quando não estavam enfrentando
os “macacos”, eles dançavam, homem com homem, um na frente do outro, a dança do
xaxado.
Com o passar do tempo houve modificações na dança e os
cangaceiros abraçavam cada um o seu fuzil ou carabina, como se fosse a dama.
O xaxado foi a maneira que eles encontraram para se livrar
das danças tradicionais, como valsas e polcas, praticadas pelo bando no começo
de sua saga, que exigiam que um dos cangaceiros fizesse o papel de dama.
O cangaceiro Sereno, por exemplo, não dançava com outro
homem de jeito nenhum. Ele ficava só espiando.
O comportamento dele virou uma
gíria muito popular nos anos 40 e 50: quem se recusa a dançar numa festa e fica
somente olhando está “no sereno da festa”.
A dança do xaxado consiste em uma fila que circula pelo
salão, com um cangaceiro atrás do outro e, ao circular, cada um deles vai
atirando a perna direita para frente, no ato de xaxar o chão.
A graça da dança
que se vê nos salões é o arrastado da alpercata no chão que faz o som
sincronizado e alegre.
Atualmente, a dança é apresentada com os brincantes abusando
dos gingados, mas originalmente consistia somente de saracoteio e de pé direito
lançado para frente, como quem trabalha cavando a terra e lançando a semente.
Os cangaceiros dançavam em fila indiana, o que ia na frente,
sempre o chefe do grupo ou o poeta, puxava os versos cantados e o restante do
bando respondia em coro, com letras de insulto aos inimigos, lamentando as
mortes de companheiros ou enaltecendo suas aventuras, vitórias e façanhas.
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