Pedro Mala Velha e sua
indefectível barba de juta
Se o querido Zé Preto é o mais longevo Amo de Boi da nossa
história, Pedro Mala Velha foi o mais longevo Pai Francisco dos nossos bumbás,
conforme pode ser lido nesta matéria publicada no matutino O Jornal, no dia 2
de julho de 1967, domingo, intitulada “Pedro Mala Velha – O Decano dos ‘Pai
Francisco’”:
52
anos não são cinco nem dois dias. 52 anos representam uma existência inteira de
dúvidas, alegrias, de prazeres, e de tristezas também. Pois é esse tempo, essa
vida que muita gente não chega a viver, que Pedro Mala Velha tem como brincante
de boi bumbá.
Os
folguedos juninos de 1967 vão terminando. Os pandeiros, os ganzás, as velhas
matracas vão sendo colocados nas prateleiras esquecidas até junho próximo,
quando voltarão a retinir, para alegria do festejo, para emoção da meninada nas
noites em que o “rola bumbá” caminha pelas ruas, como uma massa de mariposas
multicoloridas a seguir uma lamparina fumacenta, mantendo uma tradição que faz
força para não morrer. Mas pelo menos há um homem para quem a brincadeira do
bumbá está sempre presente na memória, pois ela faz parte da sua vida, nela
praticamente nasceu e nela vive até hoje. Qeremos nos referir o já acima
mencionado, ao Pedro Mala Velha, o homem que, apesar dos seus 60 anos de idade,
ainda continua, até hoje, no mesmo posto de sempre, a defender as glórias
passadas do seu boi: o velho e querido Caprichoso.
Quem é
esse Pedro mala Velha, que merece de nós, impenitentes tradicionalistas, que
fazemos todos os anos um Festival Folclórico para que as brincadeiras do povo
não soçobrem ante a maré montante do modernismo e que, com a ajuda de todos,
vamos conseguindo manter viva a chama do nosso objetivo, uma reportagem
inteirinha para gizar-lhe os traços e apresenta-lo de corpo inteiro aos
leitores desse jornal?
Trata-se
apenas de um homem como outro qualquer. Talvez apenas com uma diferença: Pedro
Mala Velha gosta do que faz e por isso o faz sempre. Ele brinca em boi bumbá
desde os oito anos, está com 60 de idade. Nascido no mesmo rincão legendário
que jamais abandonou, a Prça 14 de Janeiro, veio ao mundo como Pedro de Lima
Coelho e o capilé dos seus anos é tomado precisamente no dia 18 de outubro.
Estivador, daqueles que pegavam mesmo no pesado, estava descarregando castanha
quando uma caçamba cheia, mal manobrada, quase lhe esmagou o joelho de encontro
a um ferro deixando-lhe sua marca terrível: quase não pode ficar em pé muito
tempo, nem forçar a perna ferida. Está encostado, como se diz, e aproveita as
horas vagas, porque o dinheiro é minguado, para vender mel, frutas e outras
guloseimas, que vão ajudando a viver lá com sua patroa, Dona Rogeria Dantas
Coelho, ainda no velho bairro de seu coração, a Praça 14, bem na Rua Jonatas
Pedrosa esquina com a Avenida Ayrão.
O que
o Pedro Mala Velha tem de diferente aos nossos olhos de conservadores das
tradições amazonenses é que ele é o mais antigo “Pai Francisco” de quantos
brincam nos bumbás amazonenses. Começou aos oito anos, como dissemos, no bumbá
Amazonas, do velho Joaquim Vieira. Era vaqueiro, mas vaqueiro de mentirinha,
pois naquele tempo boi-bumbá era negócio pra homem. Depois, passou-se para o
bumbá Terra Firme, do famoso e até hoje lembrado Fausto, uma das figuras
legendárias da Praça 14. Ali ficou, sem falhar um ano sequer, até que em 1924
foi fundado por um grupo de amadores do folclore, o mais famoso de todos os
bois do Amazonas, o Caprichoso lendário, cantado em prosa e verso. Naquele
tempo, boi era uma coisa séria. Tinha sociedade, com diretoria, estatutos, assembleia
geral e contribuições mensais. Na sede social havia uma vida intensa e a
sociedade vivia o ano inteiro, não apenas em junho. No velho Caprichoso, Pedro
começou como Cazumbá (personagem que aos poucos vai desaparecendo dos bumbás),
que era um companheiro leal nas aventuras do seu compadre Pai Francisco e
servia para, no desenrolar do enredo, este narrar em voz alta as suas
peripécias para melhor compreensão do público.
Pedro Mala Velha na redação de
O Jornal, dando seu depoimento para Luiz Verçosa
O
INÍCIO DA GRANDE RIXA – Ali por volta de 1929 ou 1929 ocorre um incidente com o
Pai Francisco do Caprichoso, um brincante de nome Elias. Um dia, visivelmente
aborrecido, ele abandonou a Praça 14 e foi brincar, convidado, no boi Mina de
Ouro, quindim de amores dos habitantes de outro bairro legendário, o Boulevard
Amazonas. Ali, feito Amo do Boi, Elias se aproveitou da oportunidade e suas
toadas dirigidas aoi boi Caprichoso e seus brincantes eram catilinárias
terríveis, que hoje chamaríamos adequadamente de “xavecos”. O boi da 14 respondia, o do Boulevard
treplicava e a cosia foi indo assim num crescendo, até que começaram os
primeiros conflitos físicos, que quase resultavam em guerra entre os dois
bairros.
CORRE
SANGUE NO SÃO JOÃO – Foi no ano de 1930. Já então Pai Francisco do Caprichoso,
posto que nunca mais largou, até hoje usando uma barba escorrida, de fios de
juta, e calaça feita de chitão estampado com flores, com seu vozeirão
propositadamente enrouquecido, Mala Velha já era amado pela criançada, que
corria dele às léguas, quando ele avisava, cantando, que ia “pegar rebolo para
amolar a faca”. Pois foi naquele ano, que numa passada por perto do Boulevard,
até onde o Caprichoso tinha ido a fim de cantar numa casa, um elemento do Mina
de Ouro, de nome Laudelino, homem de maus bofes, armou uma tocaia contra Mala
Velha e quase lhe acaba com a vida na ponta de uma faca, não fora a intervenção
de outros brincantes que correram em seu socorro. Mesmo assim, Mãe Catirina do
Caprichoso não saiu sem uma facada e não faltaram tiros de revólver, muita
cabeça quebrada e sangue a valer. Depois, muitos anos depois, o Mina de Ouro
desapareceria, com ele se indo uma tradição inteira de muito valor e coragem. O
Caprichoso ficaria. Mantido pelo amor e pela tenacidade dos filhos e já até dos
netos de muitso nque fizeram seu nome, o velho bumbá continua rolando pelas
ruas de Manaus nas noites juninas, mantendo acesa a chama do entusiasmo. Ainda
este ano acaba de levantar o primeiro lugar entre os bumbás no XI Festival.
NOMES
FAMOSOS – Ao correr da lembrança, a nosso pedido, Mala Velha vai recordando nomes
famosos que fizeram o Caprichoso grandioso na imaginação do povo. Todos eles
nomes do passado, quase todos mortos, mas cuja tradição ainda hoje é recordada,
com amor e com saudade.
Grandes
Amos – Seu Raimundo, um dos donos do boi, cujas toadas de guerra e desafio,
muitas ainda são cantadas hoje. Cursino, de bigodes ruivos. Tiririca e Come
Feio, vindos do Pará.
Grande
Vaqueiro – Ninguém batia o velho Jeremias, que anos depois morreria na
Cachoeirinha, num desastre automobilístico. Nome legendário.
Diretores
dos Índios – Raimundo Xibiu e Maranhão, este mais tarde dono e amo do boi
Vencedor. À frente de 30, 40 índios caprichosamente vestidos, armados de
cacete, prontos para tudo, eram verdadeiros caciques engolfados em penas de
avestruz que eram compradas, naqueles bons tempos, a 8 e 10 mil réis por
espanador.
“Miolos”
– Mala Velha recorda e sua voz se enternece quando fala de Geraldino, Raul e
Corda Bamba.
O boi
Caprichoso era um boi luxento. Dona Paula, esposa do seu Raimundo, todo santo
dia fazia questão de lavar, ela mesma, a barra de pano que cobria as pernas do
“miolo”. Naqueles tempos que longe vão, os tremendos tambores de hoje, os
pandeiros barulhentos, os tamborins nervosos, eram blasfêmias rítmicas que não
passariam sequer na porta de um curral!
UMA
TRADIÇÃO QUE SE EXTINGUIU – Era um costume que ninguém abria mão no Caprichoso,
nos dias da matança final, quando a “panelada” era para todo mundo que ali
estivesse e quando muita gente chorava como se estivesse perdendo um ente
querido, fazer a “passagem da honra” no Boulevard Amazonas. Os brincantes do
boi da Praça 14 enchiam vários carros, daqueles que desciam a capota e que se
vê nas velhas gravuras, e, cantando seus hinos e suas toadas de guerra, desciam
velozmente o Boulevard Amazonas, enquanto uma chuva de pedras, atiradas pelos
moradores aficionados do Mina de Ouro, caía sobre eles. Cabeças quebradas,
sangue escorrendo, mas acima de tudo um estranho sentimento de orgulho pelo
feito de haver mais uma vez desafiado o “contrário”.
Hoje
mala Velha está chegando ao fim da picada. Já não é o mesmo de ontem. Os anos
todos de bumbá não lhe darão aposentadoria. A velhice e a perna batida já fazem
com que ele caminhe com muita dificuldade. Mas assim mesmo ele prossegue. E
prosseguirá. Mesmo depois de morto, ele prosseguirá, ninguém tenha dúvida
disso. Depois dele ido deste mundo, quando o Caprichoso passar, um vulto
branco, meio curvado, manacando de uma perna, irá caminhando atrás visageiro,
mas sem assombrar ninguém: será o Mala Velha acompanhando o seu boi querido
enquanto ele existir.
NOTA DO EDITOR DO
MOCÓ: O saudoso Pedro Mala Velha atravessou o espelho no dia 23 de março de
1980, no Pronto Socorro do Estado, em virtude de complicações decorrentes do
diabetes. Estava com 73 anos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário