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terça-feira, julho 19, 2016

O Pai de todos os ‘Pai Francisco’ de Manaus


Pedro Mala Velha e sua indefectível barba de juta

Se o querido Zé Preto é o mais longevo Amo de Boi da nossa história, Pedro Mala Velha foi o mais longevo Pai Francisco dos nossos bumbás, conforme pode ser lido nesta matéria publicada no matutino O Jornal, no dia 2 de julho de 1967, domingo, intitulada “Pedro Mala Velha – O Decano dos ‘Pai Francisco’”:

52 anos não são cinco nem dois dias. 52 anos representam uma existência inteira de dúvidas, alegrias, de prazeres, e de tristezas também. Pois é esse tempo, essa vida que muita gente não chega a viver, que Pedro Mala Velha tem como brincante de boi bumbá.

Os folguedos juninos de 1967 vão terminando. Os pandeiros, os ganzás, as velhas matracas vão sendo colocados nas prateleiras esquecidas até junho próximo, quando voltarão a retinir, para alegria do festejo, para emoção da meninada nas noites em que o “rola bumbá” caminha pelas ruas, como uma massa de mariposas multicoloridas a seguir uma lamparina fumacenta, mantendo uma tradição que faz força para não morrer. Mas pelo menos há um homem para quem a brincadeira do bumbá está sempre presente na memória, pois ela faz parte da sua vida, nela praticamente nasceu e nela vive até hoje. Qeremos nos referir o já acima mencionado, ao Pedro Mala Velha, o homem que, apesar dos seus 60 anos de idade, ainda continua, até hoje, no mesmo posto de sempre, a defender as glórias passadas do seu boi: o velho e querido Caprichoso.

Quem é esse Pedro mala Velha, que merece de nós, impenitentes tradicionalistas, que fazemos todos os anos um Festival Folclórico para que as brincadeiras do povo não soçobrem ante a maré montante do modernismo e que, com a ajuda de todos, vamos conseguindo manter viva a chama do nosso objetivo, uma reportagem inteirinha para gizar-lhe os traços e apresenta-lo de corpo inteiro aos leitores desse jornal?

Trata-se apenas de um homem como outro qualquer. Talvez apenas com uma diferença: Pedro Mala Velha gosta do que faz e por isso o faz sempre. Ele brinca em boi bumbá desde os oito anos, está com 60 de idade. Nascido no mesmo rincão legendário que jamais abandonou, a Prça 14 de Janeiro, veio ao mundo como Pedro de Lima Coelho e o capilé dos seus anos é tomado precisamente no dia 18 de outubro. Estivador, daqueles que pegavam mesmo no pesado, estava descarregando castanha quando uma caçamba cheia, mal manobrada, quase lhe esmagou o joelho de encontro a um ferro deixando-lhe sua marca terrível: quase não pode ficar em pé muito tempo, nem forçar a perna ferida. Está encostado, como se diz, e aproveita as horas vagas, porque o dinheiro é minguado, para vender mel, frutas e outras guloseimas, que vão ajudando a viver lá com sua patroa, Dona Rogeria Dantas Coelho, ainda no velho bairro de seu coração, a Praça 14, bem na Rua Jonatas Pedrosa esquina com a Avenida Ayrão.

O que o Pedro Mala Velha tem de diferente aos nossos olhos de conservadores das tradições amazonenses é que ele é o mais antigo “Pai Francisco” de quantos brincam nos bumbás amazonenses. Começou aos oito anos, como dissemos, no bumbá Amazonas, do velho Joaquim Vieira. Era vaqueiro, mas vaqueiro de mentirinha, pois naquele tempo boi-bumbá era negócio pra homem. Depois, passou-se para o bumbá Terra Firme, do famoso e até hoje lembrado Fausto, uma das figuras legendárias da Praça 14. Ali ficou, sem falhar um ano sequer, até que em 1924 foi fundado por um grupo de amadores do folclore, o mais famoso de todos os bois do Amazonas, o Caprichoso lendário, cantado em prosa e verso. Naquele tempo, boi era uma coisa séria. Tinha sociedade, com diretoria, estatutos, assembleia geral e contribuições mensais. Na sede social havia uma vida intensa e a sociedade vivia o ano inteiro, não apenas em junho. No velho Caprichoso, Pedro começou como Cazumbá (personagem que aos poucos vai desaparecendo dos bumbás), que era um companheiro leal nas aventuras do seu compadre Pai Francisco e servia para, no desenrolar do enredo, este narrar em voz alta as suas peripécias para melhor compreensão do público.


Pedro Mala Velha na redação de O Jornal, dando seu depoimento para Luiz Verçosa

O INÍCIO DA GRANDE RIXA – Ali por volta de 1929 ou 1929 ocorre um incidente com o Pai Francisco do Caprichoso, um brincante de nome Elias. Um dia, visivelmente aborrecido, ele abandonou a Praça 14 e foi brincar, convidado, no boi Mina de Ouro, quindim de amores dos habitantes de outro bairro legendário, o Boulevard Amazonas. Ali, feito Amo do Boi, Elias se aproveitou da oportunidade e suas toadas dirigidas aoi boi Caprichoso e seus brincantes eram catilinárias terríveis, que hoje chamaríamos adequadamente de “xavecos”.  O boi da 14 respondia, o do Boulevard treplicava e a cosia foi indo assim num crescendo, até que começaram os primeiros conflitos físicos, que quase resultavam em guerra entre os dois bairros.

CORRE SANGUE NO SÃO JOÃO – Foi no ano de 1930. Já então Pai Francisco do Caprichoso, posto que nunca mais largou, até hoje usando uma barba escorrida, de fios de juta, e calaça feita de chitão estampado com flores, com seu vozeirão propositadamente enrouquecido, Mala Velha já era amado pela criançada, que corria dele às léguas, quando ele avisava, cantando, que ia “pegar rebolo para amolar a faca”. Pois foi naquele ano, que numa passada por perto do Boulevard, até onde o Caprichoso tinha ido a fim de cantar numa casa, um elemento do Mina de Ouro, de nome Laudelino, homem de maus bofes, armou uma tocaia contra Mala Velha e quase lhe acaba com a vida na ponta de uma faca, não fora a intervenção de outros brincantes que correram em seu socorro. Mesmo assim, Mãe Catirina do Caprichoso não saiu sem uma facada e não faltaram tiros de revólver, muita cabeça quebrada e sangue a valer. Depois, muitos anos depois, o Mina de Ouro desapareceria, com ele se indo uma tradição inteira de muito valor e coragem. O Caprichoso ficaria. Mantido pelo amor e pela tenacidade dos filhos e já até dos netos de muitso nque fizeram seu nome, o velho bumbá continua rolando pelas ruas de Manaus nas noites juninas, mantendo acesa a chama do entusiasmo. Ainda este ano acaba de levantar o primeiro lugar entre os bumbás no XI Festival.

NOMES FAMOSOS – Ao correr da lembrança, a nosso pedido, Mala Velha vai recordando nomes famosos que fizeram o Caprichoso grandioso na imaginação do povo. Todos eles nomes do passado, quase todos mortos, mas cuja tradição ainda hoje é recordada, com amor e com saudade.

Grandes Amos – Seu Raimundo, um dos donos do boi, cujas toadas de guerra e desafio, muitas ainda são cantadas hoje. Cursino, de bigodes ruivos. Tiririca e Come Feio, vindos do Pará.

Grande Vaqueiro – Ninguém batia o velho Jeremias, que anos depois morreria na Cachoeirinha, num desastre automobilístico. Nome legendário.

Diretores dos Índios – Raimundo Xibiu e Maranhão, este mais tarde dono e amo do boi Vencedor. À frente de 30, 40 índios caprichosamente vestidos, armados de cacete, prontos para tudo, eram verdadeiros caciques engolfados em penas de avestruz que eram compradas, naqueles bons tempos, a 8 e 10 mil réis por espanador.

“Miolos” – Mala Velha recorda e sua voz se enternece quando fala de Geraldino, Raul e Corda Bamba.

O boi Caprichoso era um boi luxento. Dona Paula, esposa do seu Raimundo, todo santo dia fazia questão de lavar, ela mesma, a barra de pano que cobria as pernas do “miolo”. Naqueles tempos que longe vão, os tremendos tambores de hoje, os pandeiros barulhentos, os tamborins nervosos, eram blasfêmias rítmicas que não passariam sequer na porta de um curral!

UMA TRADIÇÃO QUE SE EXTINGUIU – Era um costume que ninguém abria mão no Caprichoso, nos dias da matança final, quando a “panelada” era para todo mundo que ali estivesse e quando muita gente chorava como se estivesse perdendo um ente querido, fazer a “passagem da honra” no Boulevard Amazonas. Os brincantes do boi da Praça 14 enchiam vários carros, daqueles que desciam a capota e que se vê nas velhas gravuras, e, cantando seus hinos e suas toadas de guerra, desciam velozmente o Boulevard Amazonas, enquanto uma chuva de pedras, atiradas pelos moradores aficionados do Mina de Ouro, caía sobre eles. Cabeças quebradas, sangue escorrendo, mas acima de tudo um estranho sentimento de orgulho pelo feito de haver mais uma vez desafiado o “contrário”.

Hoje mala Velha está chegando ao fim da picada. Já não é o mesmo de ontem. Os anos todos de bumbá não lhe darão aposentadoria. A velhice e a perna batida já fazem com que ele caminhe com muita dificuldade. Mas assim mesmo ele prossegue. E prosseguirá. Mesmo depois de morto, ele prosseguirá, ninguém tenha dúvida disso. Depois dele ido deste mundo, quando o Caprichoso passar, um vulto branco, meio curvado, manacando de uma perna, irá caminhando atrás visageiro, mas sem assombrar ninguém: será o Mala Velha acompanhando o seu boi querido enquanto ele existir.


NOTA DO EDITOR DO MOCÓ: O saudoso Pedro Mala Velha atravessou o espelho no dia 23 de março de 1980, no Pronto Socorro do Estado, em virtude de complicações decorrentes do diabetes. Estava com 73 anos.

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