No livro “Etnografia Amazônica – Roteiro do Folclore
Amazônico” (Edição do Autor, 1964), o historiador e pesquisador Mário Ypiranga
Monteiro nos diz o seguinte:
O
brigue ou marujada, sobrevivência evoluída do célebre romance marítimo Nau
Catarineta, surge no Amazonas, em 1909, procedente do pobríssimo distrito de
Manaus, o lago Janauacá, onde era ensaiado, primitivamente, pelo cidadão, ainda
vivo, Lourenço da Silva Braga, baiano, radicado no Amazonas, o qual transferiu
a responsabilidade do grupo folclórico ao sr. Raimundo Turibi, paraense, funcionário
aposentado do Colégio Estadual do Amazonas.
Esse brigue
conserva o primitivo nome Independência. Nunca perdeu a linha tradicional,
circulando todos os anos pelo carnaval. Àquela época era comandante o cidadão
Sérgio Ribeiro de Avelões, que ainda reside na rua do Visconde de Porto Alegre,
Manaus.
Em Janauacá,
fundou o brigue Aquidabã (1939-1940), homenagem ao navio de guerra que explodiu
na baía de Jacareacanga. Também fundou o brigue Amazonas, que era uma cópia
perfeita do antigo vaso de guerra amazonense Cidade de Manaus, também em
1939-1940.
Este
brigue, sob outra orientação, continua circulando no lago Janauacá, mas dado
que naquela região a vida social se manifesta mais por intermédio da água, o
tradicional barco, talvez o único de sua espécie no norte, também circula na
água, pelos lagos e furos.
Curioso
é o fato, a assinalar, de que o primitivo brigue Independência era um batelão
provido de mastros enfeitados, tripulado pelos próprios brincantes,
transportando o brigue em miniatura. O ensaiador era o senhor Raimundo Turibi.
Também
é de nosso tempo de menino o brigue São Paulo, desaparecido e sem tradição.
Chegança dos Marujos
Fragata Brasileira, da cidade de Saubara, no Recôncavo Baiano, que tem mais de
80 anos de existência
No livro “Acontecimentos de um Amazonas de Ontem” (Imprensa
Oficial do Amazonas, 2006), o artista plástico, folclorista e escritor Moacir
Andrade também fala um pouco sobre as origens dessa brincadeira de marujos aqui
na nossa taba:
No
carnaval de 1934, eu morava numa casa ao lado da Padaria Amazonas, de um
espanhol chamado Garcia, pai do empresário Francisco Garcia. Eu e outros moleques
da Rua dos Andradas íamos esperar, no Porto das Catraias que ficava no final
daquela rua, a chegada dos brigues: Independência, Constantinópolis e Nau
Catarineta, todos os três do bairro de Educandos.
De
branco, enchiam vários barcos que, em fila indiana, atravessavam o igarapé de
São Raimundo até a Rua dos Andradas, cantando os seus hinos oficiais.
Desembarcavam, dançando e cantando, e subiam a rua até a confluência com a
Avenida Eduardo Ribeiro, para subir a avenida recebendo aplausos de toda a população
de Manaus, que, há essa hora, já enchia aquela via até a Ramos Ferreira, para
descer ao ponto inicial e subir de novo.
Esses
cordões carnavalescos não vinham juntos, mas separados uns dos outros por
outros cordões ou blocos. O que eu gostava mesmo era ver o Brigue
Independência, todo branco, embandeirado, sobre uma padiola levada por dois
marinheiros, com suas luzinhas acesas, coloridas, que à noite lhe emprestavam
uma beleza incomparável.
Era o
seu comandante, um negro muito simpático de origem barbadiana que tinha sua
residência no bairro de Educandos e chamava-se Raimundo Nonato Thuriby, antigo
funcionário da Instrução Pública, depois Secretaria de Educação do Amazonas,
funcionando nos altos do Ginásio Amazonense Pedro II, onde exercia o cargo de bedel
ou inspetor de alunos.
O
Brigue Independência tinha um hino muito bonito que começava assim: “Sou
marinheiro / sina que Deus me deu / não há uma vida tão bela / como no mar /
oh, que vida é essa minha / eu alegre a cantar / vem comigo, donzela / vem este
mar salvar / este mar é um furacão / o meu eterno coração / quando vem
encapelando / no azul do céu / não há vida tão bela / como no mar”. Cada
marinheiro possuía a sua espada de madeira, muito bem feita, que rodavam no ar
em evolução, imitando estarem lutando.
O
Thuriby vestido numa farda de Almirante imaculadamente branca, com seu apito,
era o mais elegante, com fitas coloridas, medalhas no peito e uma espada de
verdade. Ele comandava elegantemente seus marinheiros, com seu apito de metal
seguro por um cordão de ouro na altura do peito, subindo e descendo a Avenida
Eduardo Ribeiro até às nove horas da noite, quando se retiravam de volta ao
bairro, pelo mesmo caminho, onde tinham a sua sede, apitando sem cessar em
ritmo de marcha, sempre evoluindo.
O Brigue
Independência, o mais antigo e respeitado daquele longínquo bairro de Manaus,
foi trazido de Barbados, no Mar das Antilhas, pelo seu venerado pai. Por ser o
primeiro cordão de marinheiros, criou uma tradição que se arrastou até a morte
de Raimundo Thuriby.
Depois
dos desfiles gloriosos na avenida, domingo e terça-feira de carnaval, o Brigue
Independência dançava nas residências familiares, recebendo uma pequena
gratificação que, no final da temporada, cobria a despesa da festa dos
componentes.
O que
eu achava importante em Thuriby é que ele, no outro dia, já estava no seu posto
de bedel, na hora certa, no velho ginásio onde eu fiz os cursos ginasial e
científico.
Thuriby
era meu amigo desde os tempos ginasianos. Lembro-me que ele revelou-me em
conversa, que essa brincadeira folclórica foi trazida pelo seu velho pai, que
emigrou de Barbados para o Amazonas no tempo da borracha, para trabalhar com os
ingleses administradores das muitas concessões que possuíam em Manaus.
Creio
que com a morte do velho amigo Thuriby, morreu também essa bela manifestação do
folclore inglês importado para o Amazonas.
A famosa Marujada de
Jacobina (BA), uma das poucas a incluir crianças nas apresentações
De acordo com Luís da Câmara Cascudo, a festança denominada
de Nau Catarineta, Marujada, Barca, Fandango, Brigue ou Chegança dos Marujos tem
uma origem bem definida e, se acreditamos nele, bem distante do mar do Caribe
ou do lago de Janauacá:
Trata-se
de uma xácara portuguesa narrando as peripécias de uma longa travessia
marítima, as calmarias que esgotaram os mantimentos, a sorte para sacrificar um
dos tripulantes, a presença da tentação diabólica e a intervenção divina,
levando a nau a bom porto. Publicou-a Almeida Garrett no seu Romanceiro e
Cancioneiro Geral, Lisboa, 1843. Impossível indicar o número de variantes em
Portugal e no Brasil. No Romanceiro de Garrett é a XXVI, A nau Catarineta.
Muitos
dos elementos sobrenaturais da xácara ocorrem nos romances El Marinero e Santa
Catarina, divulgadíssimos na península ibérica e América espanhola, motivos da
sedução demoníaca e da bondade divina. Houve realmente uma nau Catarineta que
sofreu dolorosa jornada para Lisboa. Em 1666, os capuchinhos Michael Angelo de
Gattina e Denis Carli de Piacenza, indo do Brasil para Portugal, encontraram
calmarias no Equador e recordaram a tragédia do infelice vascello detto
Catarineta (Mário de Andrade, A nau Catarineta, Revista do Arquivo Municipal.
LXXIII, São Paulo, 1941; Renato Almeida, História da música brasileira,
211-216, ed. Briguiet, Rio de Janeiro, 1942).
É o
documento mais antigo e revelador da historicidade do acontecimento.
Transmitida oralmente, a xácara tem sido cantada ininterruptamente por todo o
Brasil, isolada, como em Portugal, ou reunida às jornadas de um auto
tradicional, fandango ou marujada, talqualmente sucede com outras xácaras
portuguesas, O capitão da armada, por exemplo, que também está no fandango;
(Jaime Cortesão, O que o povo canta em Portugal, 142. Livros de Portugal, Rio
de Janeiro, 1942).
Marujada de Nossa
Senhora do Rosário, na cidade Felicio dos Santos (MG)
Nas apresentações em Manaus, o Brigue Independência possuía
um enredo pré-determinado, dividido em duas partes. A primeira parte era constituída
de várias cantorias: “Mensagem às mães dos marujos”, “Chamada para viajar”,
“Anúncio da partida do brigue”, etc.
Na segunda parte, começava o auto
propriamente dito com o seguinte enredo:
Um brigue estava singrando os mares com uma guarnição de marinheiros
e oficiais. Não satisfeito com as ordens do Comandante, o Imediato tentou
sublevar a tripulação e deu início a uma revolta a bordo, mas só conseguiu o
apoio de meia dúzia de marinheiros.
O Comandante, vendo o navio parado no meio
do oceano, chama o Imediato e ordena:
– Leva acima o gajeiro, naquele mastro real, vê se avista
terra de Espanha ou areia de Portugal!
O gajeiro da gata (marinheiro da gávea do mastro da mezena) responde:
– Não avistei terras de Espanha, nem areia de Portugal, avistei
três moças lindas, debaixo de um laranjal!
O Comandande retruca:
– Todas três são minhas filhas, prendadas, vivem pro lar,
sendo tu meu mui amigo, dou uma pra te casar!
Responde o gajeiro da gata:
– Não quero nenhuma de suas filhas para comigo casar, quero
o Brigue Independência para nele navegar!
Intrigado, o Comandante pergunta:
– Segundo Maquinista, se estamos em altos mares, me diga qual
o motivo de as nossas máquinas pararem?
– Desculpe, meu Comandante, mas disso não faço vista. Quem
sabe dessa marmota é o Primeiro Maquinista...
O Comandante insiste:
– Primeiro Maquinista, se estamos em altos mares, me diga
qual o motivo de as nossas máquinas pararem?
– Não quero lhe aborrecer, meu distinto Comandante, mas foi
ordem do telégrafo, chegada a um instante!
O Comandante fica irritado:
– Quem é esse vil traidor, que à tripulação quer revoltar? Não
vou deixar esse pilantra manchar a farda militar!
Responde o Imediato, secundado pela meia dúzia de sublevados:
– Sou eu, comandante!
– Eu quem?
– Eu, seu Imediato!
– Meu Imediato, a primeira pessoa de minha confiança?! Tenta
me desmoralizar a bordo de um navio sob meu comando na maior infâmia? Pra se
tornar alegre procede dessa forma, como se não fosse um militar digno, mas um
vil calhorda?
– Não sei, Comandante, mas explicarei. A ganância que me
assalta de momento a momento tem sido a razão desse tormento. A ambição que se
apoderou do meu coração é tanta e tanta que já flui em borbotão feito xixi de
anta. Meu sonho é ser comandante do brigue e juro por tudo que serei, embora
seja preciso para conseguir isso ter que acabar com toda a sua grei. Vou fazer seus
miolos saltarem da proa pra ré e depois dar sua carniça de comida para jacaré.
Sem se abalar, o Comandante responde:
– Oficiais e marinheiros, valorosos leões dos mares, quando
se tem um traidor deste à bordo, é preciso cumprir as leis militares. Portanto,
peguem esse traidor sem demora e prendam o gajo a ferros no paiol de pólvora.
O Imediato reage:
– Peraí, peraí, infeliz daquele que chegar perto de mim.
Farei dele a bainha da minha espada e juro que será seu fim.
Neste momento aparece o Mestre, com o resto da marujada:
– Está preso, Imediato, e não dê mais nenhum passo!
– Eu, preso? Meça sua bravata que sou um Capitão de Fragata!
– Nada tenho nada com isso, só cumpro o que foi pedido. Está
preso e se renda à vera, que o paiol de pólvora o espera!
Depois de pensar um pouco, o Capitão reconsidera:
– Seu Mestre, desarme o Imediato e arreie o escaler de bordo
com doze remos para deixar esses celerados em terra, lá nos confins fim do varre-vento.
O Mestre obedece. Fala o Imediato:
– Seu Mestre, dê licença de eu cantar uma singela canção e
me despedir com orgulho desta distinta guarnição?
Todos os marinheiros respondem:
– Às ordens...
Imediato começa a cantar:
– Em minha revolta / meus galões perdi / se não me matarem /
ainda serei feliz / adeus meu gajeiro / adeus guarnição / até outra hora / em
outra repartição.
Terminando o canto, ele diz:
– Partamos, companheiros de viagem, pois vamos ver o mundo
em outras paragens!
O Comandante responde:
– Vá com o diabo que te carregue, desonrado! E que um jacaré
te coma, desgraçado!
Imediato replica:
– Seu Mestre, daqui a cinco minutos não vá se assustar
quando ver o casco do Brigue Independência beijando o fundo do mar...
Ouvindo aquilo, o Mestre corre aflito dentro do navio e depois
chega dizendo:
– Fogo a bordo, Comandante. Foi outra armadilha do vil
tratante!
Todos os tripulantes rezam o terço e começam a entoar várias
ladainhas. De repente, desaba um grande temporal e o fogo é debelado.
Os marinheiros agradecem a graça alcançada e fazem seu canto
de despedida.
O Brigue Independência deixou de navegar em Manaus em meados
dos anos 70.
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