Uma das histórias mais conhecidas para o auto do Boi-Bumbá tem
o seguinte enredo: o negro Pai Francisco, um velho caipira, cultiva o seu
roçado e, em seguida, volta à sua palhoça para seu repouso com sua amada esposa
Catirina, que se achava em adiantado estado de gestação. Em dado momento, ele
olha para fora de sua palhoça e vê um boi comendo sua plantação. Enfurecido e
atendendo ao desejo de sua esposa de comer “língua de boi”, ele pega a
espingarda, se junta ao compadre Cazumbá e atira à queima roupa no animal.
Supondo ter morto o boi de estimação do Amo, ele foge atemorizado e refugia-se
em sua palhoça.
O Amo, sentindo falta do seu boi de estimação, chama seus
vaqueiros e manda procurá-lo. Saem à procura e o encontram caído na malhada à
beira de um bebedouro. Os vaqueiros voltam dando a triste notícia. O Amo manda
chamar o seu Rapaz de Confiança para dar a notícia de quem poderia ter morto
seu boi. O Rapaz, por meio de boatos e diz-que-diz-que, soube que tinha sido o Pai
Francisco. Enfurecido com a presepada, o Amo manda o Rapaz ir prendê-lo. Este
chega à casa do pai Francisco e é recebido à bala. Ele volta então a seu Amo e
conta como foi recebido.
Mais enfurecido ainda, o Amo manda o Rapaz levar uma carta
ao Diretor dos Índios, pedindo-lhe para prender Pai Francisco, Catirina e seu
compadre Cazumbá. O Diretor dos Índios exige um Padre para batizar seus
caboclos, antes de prender a trinca de arruaceiros. Preso e levado amarrado à
presença do Amo, Pai Francisco confessa ser o autor da morte do boi.
Compadecido da má sorte e do castigo que espera pelo Pai Francisco, um Pajé
reúne seus índios para realizar uma pajelança onde pretende ressuscitar o boi,
mas não obtém bom resultado.
Como último recurso, o Amo sugere ao Pai Francisco que vá
procurar o Dr. Da Vida, famoso curador da região para tentar curar o boi. Chega
o Dr. Da Vida e constata que o boi não está morto, está apenas ferido, e depois
de passar a receita o boi levanta-se para alegria do Amo e de todos os
vaqueiros.
Na região amazônica, salvo pequenas variações, era mais ou
menos assim que transcorria uma apresentação do boi-bumbá tanto no terreiro das
casas dos contratantes quanto nos tablados dos festivais populares, nos velhos
tempos de antanho:
O cortejo caminha pela rua em direção ao local de
apresentação. Na frente vai a Barreira de Índios, empunhando lanças, arcos e
flechas. Sua principal função é proteger o boi da possível investida de bumbás
adversários. Logo atrás da Barreira de Índios, vem o Boi-bumbá, o Amo do Boi e
o Rapaz do Amo, circundados pelos Vaqueiros e suas burrinhas.
Pai Francisco, Mãe Catirina e Cazumbá vão fazendo
estripulias ao seu bel prazer, principalmente assustando as crianças que
acompanham o cortejo com a intenção de amolar a faca em suas bundas. A batucada
segue no final, junto com os demais personagens do auto, os rapazes dos
candeeiros, os seguranças e a multidão de simpatizantes do boi. Durante o
percurso, os brincantes vão cantando as toadas de rua mais tradicionais de cada
boi-bumbá.
O Amo do Boi se posiciona em frente à residência do
contratante e canta a toada de chegada: “Senhora dona da casa / agora que eu
cheguei / cheguei, cheguei, cheguei / não me deram notícias suas / de saudade quase
que chorei”
O boi começa a evoluir no meio de um círculo formado pelos
demais brincantes, enquanto o Amo vai cantando várias toadas.
De repente, o Amo canta uma toada diretamente endereaçada ao
boi: “Vem cá meu boi / vai morrer ao redor das campinas / assim faz quem pode /
vai morrer nos braços das meninas”
Pai Francisco atira no boi. O boi estrebucha e cai no chão.
Catirina canta uma toada: “Atirou, atirou, atirou, meu amo / atirou, mas não
foi pra matar / foi a arma que disparou / arreia no chão bem devagar”
O Amo canta: “Morreu, morreu / morreu, já caiu no chão / já
morreu meu boi formoso / este boi era a prenda do meu coração”
O Amo fala pra Pai Francisco: “Chico, caba safado, já que
fizeste essa maldição, agora desossa o boi e começa a repartição!”
Os vaqueiros começam a cantoria para Pai Francisco amolar a faca:
“Olelê, olelê, olalá / Nego Chico agora / a faca vai amolá”
Pai Francisco procura uma criança para fazer rebolo (segurar
os dois chifres do boi e ficar rebolando para ele amolar a faca na bunda da
vítima. Se não agarrar nenhum moleque, Mãe Catirina faz o rebolo)
Pai Francisco amola a faca e diz: “Pronto, meu amo, já
amolei a faca!”
Amo responde: “Já que amolaste a faca, vai me tirar a língua
do boi e vender pra dona da casa!”
Vaqueiros começam a cantar a toada para Pai Francisco tirar a
língua: “Ô Chico tira a língua / ô Chico tira a língua / ô Chico tira a língua / se
quer tirar”
Após ter tirado a língua, Pai Francisco canta: “Catirina,
nega velha / meu amor, meu bem querer / a língua do boi, Catirina / é pra nós ir já vender”
Pai Francisco vai vender a língua: “Boa noite, dona da casa
/ como vai como passou? / eu vim vender a língua do boi / que meu amo me
mandou”
Pai Francisco canta após vender a língua pra dona da casa:
“Eu já vendi / eu já vendi / falta receber / quem comprou a língua do boi / o
meu amo tem que saber”
O Amo fala pra Pai Francisco: “Agora aproveita e faz a
repartição do boi!”
Pai Francisco chama Mãe Catirina e os dois começam uma toada
de chamada e resposta, enquanto fingem estar desossando o boi.
Pai Francisco “Vô reparti o boi, como meu amo pediu...”
Mãe Catirina: “E quem não gostá... que vá pra puta que
pariu...”
Pai Francisco: “E a tripa mais fina?”
Mãe Catirina: “É de comadre Serafina!”
Pai Francisco: “E a tripa mais grossa?”
Mãe Catirina: “É de compadre Zé da Roça!”
Pai Francisco: “E repartindo os rins?”
Mãe Catirina: “É do Neco Martins!”
Pai Francisco: “E repartindo a banha?”
Mãe Catirina: “É do Chico Piranha!”
Pai Francisco: “E o corredô?”
Mãe Catirina: “É do seu dotô!”
Pai Francisco: “Pra se arreparti?...”
Mãe Catirina: “Com o seu promotô!”
Pai Francisco: “E a chã de dentro?”
Mãe Catirina: “É de compadre Zé Sarmento!”
Pai Francisco: “E a chã de fora?”
Mãe Catirina: “É de compadre Zé da Hora!”
Pai Francisco: “Lado do cangote?”
Mãe Catirina: “É de Chico Onofre!”
Pai Francisco: “E o lado de trás?”
Mãe Catirina: “É do Chico Tomáz!”
Pai Francisco: “E a rabada?”
Mãe Catirina: “É da rapaziada!”
Pai Francisco: “Pra se arreparti?...”
Mãe Catirina: “Com a Chica Pelada”
Pai Francisco: “Pedaço da mão?”
Mãe Catirina: “É do Kleber Romão!”
Pai Francisco: “Pedaço do pé?”
Mãe Catirina: “É do Pedro Tomé!”
Pai Francisco: “E o chifre de quem é?”
Mãe Catirina: “De quem tiver mulher...”
Pai Francisco e Mãe Catirina vão embora. O Amo recita uma
toada, como se estivesse muito emocionado: “Grande paixão tenho eu / dentro do
meu coração / de ver meu boi morto / deitado neste frio chão / que conta darei,
meu pai, / quando chegar no sertão! / oh, vaqueiro, meu bom vaqueiro, /
vaqueiro de minha estimação”
Vaqueiro canta: “Eu sou um triste vaqueiro / que vive na
vaquejada / dei falta de meu boizinho / achei morto na malhada”
Amo pergunta: “Vaqueiro, meu bom vaqueiro, pra que te tenho,
vaqueiro?”
Vaqueiro responde: “Pra sua defesa, meu amo!”
Amo pergunta: “Vaqueiro, não sabe dizer quem matou meu boi?”
Vaqueiro responde: “Meu amo, já procurei muito, porém não
procuro mais, quem deve saber é o primeiro rapaz”
Amo fala: “Então me chama o primeiro rapaz”
Vaqueiro canta: “Ô rapaz do amo, ô rapaz / meu amo te chama,
ô rapaz / meu amo, rapaz, te chama / vai falar com ele, ô rapaz”
Rapaz canta: “Sou eu rapaz do meu amo / vaqueiro pra que me
quer? / tô pronto para a batalha / a cavalo e não a pé”
Amo pergunta: “Rapaz, ô meu bom rapaz, pra que te tenho?”
Rapaz responde: “Pra sua defesa, meu amo!”
Amo fala: “Não sabe dizer quem matou meu boi?”
Rapaz responde: “Entrei pela várzea grande / saí pela vau do
risco / ouvi uma voz dizer / que foi Catirina e Pai Francisco”
Amo fala: “Então vai me buscar esse nego preso e amarrado”
Rapaz responde: “Meu amo, eu não sei o caminho...”
Amo dá uma relhada no lombo do Rapaz e fala: “Vai buscar
esse nego preso e amarrado e é agora...”
Rapaz canta: “Cantando e chorando / meu amo me bateu / por
causa do nego Chico / o meu boi morreu”
Rapaz vai à casa de Pai Francisco tentar prender ele, mas
Chico não se entrega e ainda xinga o Amo do boi de ser um cabra ladrão e safado.
O Rapaz retorna à fazenda e conta o sucedido: “Ô senhor meu
amo / Chico me atirou / nem bala nem chumbo / nada me pegou”
Amo canta: “Ô rapaz, pega o nego / que o nego é atrevido / o
nego matou meu boi / e já está escondido”
Rapaz canta: “Ô senhor meu amo / eu vou lhe contar / só quem
traz o nego / é os caboco rear”
Amo canta: “Venha cá rapaz / venha me dizer / o que o nego
disse / que eu quero saber”
Depois de ouvir de novo o relato do rapaz, o Amo canta:
“Rapaz da minha fiança / venha cá faça favor / vá me levar essa carta / na casa
do Diretor”
Rapaz vai à casa do Diretor dos Índios e canta: “Boa noite,
seu Diretor / como vai, como passou? / vim só trazer essa carta / que meu amo
lhe mandou”
Diretor lê a carta e responde: “Rapaz, diz lá pro teu amo /
Tô pronto pro que quiser / que me mande um bom cavalo / que não posso andar a
pé”
Rapaz retorna à fazenda e diz a resposta do Diretor para o
Amo. O Amo manda selar um cavalo e o Rapaz leva ao Diretor dos Índios. Depois
que chega à fazenda, o Diretor indaga: “Boa noite, amo do boi / por que mandou
me chamar? / estava na minha aldeia / com meus cabocos rear”
Amo canta: “Senhor Diretor dos Índios / fui eu que mandei
chamar / pra prender o nego Chico / com seus cabocos rear”
Diretor canta: “Boa noite, amo do boi / como vai, como
passou? / estou pronto preparado / para as ordens do senhor”
Amo fala, em tom ríspido: “Senhor Diretor dos Índios, mandei
chama-lo em minha casa para prender o nego Chico, que matou meu boi. Ele está
em cima da serra, não há meio de vim cá”
Diretor avisa: “Meus cabocos só vão à guerra se forem
batizados...”
O Amo, o Rapaz e o Diretor vão falar com o Padre da aldeia. Depois
que fica a par da situação, o Padre pede ao Diretor para reunir os cabocos que
serão batizados.
Padre fala: “Caboco se ajoelha, caboco se espoja no chão,
manda os brutos ficar de joelhos, que estou com a Bíblia na mão”
Diretor chama os cabocos: “Pein, Pery, Tupã, Paraguaçu,
Tupinambá, Caramuru”
Padre canta: “Batizo os cabocos / ao som do tambor / pra irem
à guerra / com Nosso Senhor / batizo os cabocos / ao som da viola / pra irem à
guerra / com Nossa Senhora”
Quando acaba o batismo, o Diretor dos Índios dá um tiro de
espingarda pro céu.
Pai Francisco fica assustado: “Que grande estrondo deu na
aldeia / Catirina, o que será? / será Diretor dos Índios / com seus cabocos
rear?”
Diretor dos Índios dá o ultimato: “Pai Francisco, nego velho
/ lá de cima do outeiro / prepara teu bacamarte / lá vai caboco guerreiro”
Amo canta: “Ecoou, ecoou, / bota nego no chão / esse nego é
malvado / não tem medo não”
Os índios prendem Pai Francisco e o Diretor canta: “Já
chegou meus cabocos / todos eles baleados / houve sangue na guerra / trouxero o
nego amarrado”
Pai Francisco canta: “Cabocos me prenderam / foi com muita
da razão / eu era um pobre sozinho / eles eram uma porção”
Diretor fala ao Amo: “Pronto, meu amo, nego Chico valentão,
trouxe preso e amarrado de pé e mão, assim que o nego me viu, cachimbo caiu no
chão”
Amo fala: “Este é o nego ladrão de boi?...”
Diretor responde: “É, meu amo!”
Amo fala: “Chico, eu mandei te buscar pra me contares porque
motivo mataste meu boi. Se me contares direitinho, eu te dou uma prenda, mas se
tu falhar eu mando te surrar...”
Pai Francisco fala: “Meu amo, eu só conto se o sinhô mandar
me desamarrar e devolver os carregamento!”
Amo fala: “Senhor Diretor dos Índios, mande desamarrar o
nego e lhe devolver as armas”
Pai Francisco conta a história: “Meu amo, é o seguinte! Eu
tinha um roçado muito grande, lá eu plantei muita coisa. Então, apareceu o boi.
A Catirina tava grávida, desejou comer um pedaço do boi. Eu não queria matar,
dizia pra ela que o boi podia ser do meu amo e de estimação e que depois eu podia
me enrascar. Mas o sinhô sabe como é pedido de mulher... E ela pediu e pediu e
pediu e eu matei o boi!”
Amo fala: “Já que mataste meu boi, quero ver ele em ponto de
bala dentro de alguns minutos dançando fandango em cima da pedra virgem ou tua
Catirina vai se vestir luto. A teu favor, tem o Dr. da Vida.”
Amo canta: “Na Paraíba / dona Maria casou / com grande
fortuna / pra Chico chamar doutor / chama doutor / pra curar boi / chamai
Chiquinho / pra contar como foi”
Depois de chamar o Dr. da Vida, Pai Francisco fala pro Amo:
“O doutor diz que o boi não está morto, foi só baleado. Ele passou a receita e
mandou chamar os vaqueiros pra soprar três aboios no berrante, que o boi
levanta”
Um dos vaqueiros chama o boi três vezes fazendo aboios no
berrante e então o boi urra.
O Amo canta: “Urrou! urrou!/urrou que ouvi! / boi mais bonito
que este / garanto que nunca vi!/ urrou! urrou! / urrou o fama reá! / boi de
fama como este / no sertão não haverá /
urrou! urrou! / urrou, voltou a urrar! / urra meu boi na campina / canta sereia
no mar”
O boi se levanta e recomeça a bailar.
O Amo canta: “Levantou o maiorá / levantou pra vadiá /
levantou meu boi de fama / o melhor boi do lugar”
Os brincantes começam a cantar a toada de despedida: “Nosso
boi se despede e vai embora / moça bonita que fica não vá chorar / eu me
despeço é morrendo de saudade / e sofro de pena de não poder te levar”.
A apresentação durava cerca de 45 minutos. O bumbá então
seguia pela rua em direção à nova residência onde se apresentaria pela segunda
vez. Em média, cada bumbá se apresentava de três a quatro vezes na mesma noite.
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