No dia 14 de junho de 1952, o matutino O Jornal publicava
uma pequena matéria intitulada “Briga de bumbás – Mina de Ouro x Corre Campo”,
que dava uma pequena amostra de como eram os enfrentamentos dos bois de rua
naqueles tempos fluviais:
Às
primeiras horas da madrugada de hoje, ocorreu um choque entre bumbás, à Avenida
Epaminondas. Àquela hora, seguidos de grande acompanhamento, movimentavam-se na
referida artéria os bumbás Mina de Ouro e Corre Campo. A aproximação dos bumbás
foi anunciada pelos desafios de praxe: “Êi, ferro, êi aço, eu procuro, mas não
acho” e “Contrário não te assanha senão tu apanha”.
E
deu-se o choque. Pânico entre os brincantes. Gritos e correrias. O incidente já
tomava proporções gigantescas, quando surgiu no local, oportunamente, a Polícia
do Exército e as autoridades da Polícia Civil, que fizeram um cerco e levaram
amos, vaqueiros, Catirinas e Pais Francisco, além de grande número de
torcedores, rumo ao xadrez da repartição da Rua Marechal Deodoro, onde passaram
o resto da noite.
Com a
intervenção das autoridades policiais e da Polícia do Exército, verificou-se a
existência de dois feridos em virtude dos encontros entre os elementos da
vanguarda dos bumbás, os quais foram atendidos no S.S.U. São eles: José Purcino
Gomes, residente no Pico das Águas, 99, e Vitória Maria da Conceição, residente
no Beco do Macedo.
A brincadeira do boi de rua já existia em Manaus pelo menos
desde 1850. No livro “Viagens no Rio Amazonas” (1859), o pesquisador Robert
Avé-Lallemant fala sobre uma brincadeira que presenciou aqui na taba:
De
longe ouvi da minha janela uma singular cantoria e batuque sincopados. Surgiu
no escuro, subindo a rua, uma grande multidão que fez alto diante da casa do
Chefe de Polícia, e pareceu organizar-se, sem que nada se pudesse reconhecer.
De
repente as chamas dalguns archotes iluminaram a rua toda a cena. Duas filas de
gente de cor, nos mais variegados trajes de mascarados, mas sem máscaras –
porquanto caras fuscas eram melhores – colocaram-se uma diante da outra, deixando
assim um espaço livre.
Numa
extremidade, em traje de índio de festa, o tuxaua ou chefe, com sua mulher;
esta era um rapazola bem proporcionado, porque mulher alguma ou rapariga
parecia tomar parte da festa.
Esta
senhora tuxaua exibia um belo traje, com uma sainha curta, de diversas cores, e
uma bonita coroa de penas. O traje na cabeça e nos quadris de uma dançarina
atirada faria por certo vir abaixo toda uma plateia em Paris ou Berlim.
Diante
do casal postava-se um feiticeiro, o pajé; defronte dele, na outra extremidade
da fila, um boi. Não um boi real, e sim um enorme e leve arcabouço dum boi, de
cujos lados pendiam uns panos, tendo na frente dois chifres verdadeiros.
Um
homem carrega essa carcaça na cabeça, e ajuda assim a completar a figura dum
boi de grandes dimensões.
As batalhas campais entre os bois bumbás, aparentemente,
começaram em 1925, depois que uma dissidência do boi Caprichoso, da Praça 14,
resolveu criar o boi Mina de Ouro, no Boulevard Amazonas. Quando os dois bois
se encontravam pelas ruas, os brincantes resolviam tirar suas diferenças no
braço.
Com o surgimento de mais dois grandes bumbás (em número de
brincantes e de torcedores) nos anos 40, o boi Corre Campo, da Cachoeirinha, e
o boi Tira Prosa, de Santa Luzia, as escaramuças se multiplicaram por quatro.
O mais curioso é que esses enfrentamentos homicidas só
ocorriam no período junino, quando todo brincante do boi contrário se tornava
um “alemão” (“inimigo”) em potencial, mesmo que fosse um parente de sangue.
No restante do ano, os brincantes dos diversos bumbás retomavam
as velhas amizades, frequentavam as mesmas escolas de samba e divertiam-se
mutuamente xavecando um ao outro pelas lembranças das batalhas passadas.
Se para muita gente a briga entre os bumbás não passava de um
componente cultural daquele folguedo machista por excelência (o papel da única
figura feminina do auto, Mãe Catirina, era exercido por um homem fantasiado de
mulher), para outras pessoas mais civilizadas aquilo era um descalabro
inimaginável, que desvirtuava a própria brincadeira. O jornalista Bianor Garcia
era uma dessas pessoas.
Ele iniciou suas atividades profissionais, em 1949, aos 16
anos, como repórter do Jornal do Comércio e radialista da Rádio Baré, ambos os
órgãos fazendo parte do Condomínio Acionário dos Diários e Emissoras
Associados, do jornalista Assis Chateaubriand, que era dirigido em Manaus pelo
jornalista Epaminondas Baraúna.
No papel de “foca” de alguns dos melhores jornalistas da
cidade, Bianor Garcia tomou gosto pela profissão e construiu uma carreira
brilhante, meteórica e bem sucedida. Afável no trato com as pessoas, bem
articulado, inteligente, espirituoso, dotado de uma cultura enciclopédica e de
uma conversa envolvente, o jornalista se tornou em pouco tempo uma das estrelas
mais bem informadas da imprensa amazonense, arregimentando uma legião de fãs em
todos os círculos sociais.
Transitando com desenvoltura tanto nos salões dos políticos
poderosos quanto nas festas humildes do populacho da periferia, o jornalista
neófito teria um papel fundamental no resgate e na consolidação de nossas
tradições populares verdadeiramente autênticas, por conta da rede de amigos que
foi consolidando ao longo da carreira.
Em 1956, Bianor Garcia recebeu uma proposta irrecusável do
ponto de vista financeiro e se transferiu para a empresa Archer Pinto, para ser
editor-chefe do vespertino Diário da Tarde e redator do matutino O Jornal, os
dois maiores veículos de comunicação da época.
Em junho daquele mesmo ano, uma briga campal entre os bumbás
Corre Campo e Tira Prosa, que teve início na terceira ponte metálica da
Cachoeirinha (a popular “Ponte de Ferro”, nas proximidades da Penitenciária do
Estado), havia deixado o jornalista perplexo com a violência do confronto,
explorado em detalhes pela mídia sensacionalista.
Durante a briga, vários brincantes dos dois bumbás foram
arremessados do vão da ponte de ferro para o leito do rio Negro, que, para
sorte dos infelizes, já estava cheio nessa época do ano. Outros brincantes e
torcedores foram feridos a golpes de faca e canivete ou tiveram suas cabeças
quebradas pelos cacetes de cumaru utilizados pelos índios dos bumbás.
Apesar da selvageria do confronto, ninguém foi morto, mas o
jornalista ficou perplexo com aquele incidente e resolveu agir.
Em março de 1957, Bianor Garcia apresentou ao diretor
Aloisio Archer Pinto o projeto de um concurso entre os grupos folclóricos da
cidade, incluindo os bumbás, para acabar com as sangrentas disputas entre eles.
O diretor aprovou a ideia, mas condicionou a realização do
mesmo para o ano seguinte devido ao falecimento recente de seu irmão Aguinaldo
Archer Pinto, diretor-presidente da empresa. Sem esconder o desapontamento, Bianor
Garcia engavetou o projeto.
Alguns dias depois, recém-chegada do Rio de Janeiro para
assumir a direção da empresa, a viúva Maria de Lourdes Archer Pinto ficou
sabendo da sugestão de Bianor Garcia por meio de um algum funcionário do jornal
(talvez o colunista social Nonato Garcia, o “Nogar”, talvez o colunista social
Luiz da Conceição Pinto, o “Little Box”, talvez o próprio Bianor Garcia, há
controvérsias a respeito) e concluiu que a promoção seria uma bela homenagem
póstuma ao marido.
Ela então autorizou o jornalista a implantar o projeto
naquele mesmo ano. Nascia o Festival Folclórico do Amazonas.
Naquela época, a capital amazonense possuía uma população de
aproximadamente 150 mil pessoas e definhava em termos urbanos, econômicos e
sociais. Possuindo um ensino superior incipiente, sofrendo escassez de energia
elétrica, com um mercado reduzido e de baixo poder aquisitivo, sistemas de
transporte e comunicação precários, Manaus oferecia um cenário de fragilidade
econômica e sem a menor perspectiva de mudanças.
As únicas diversões de massa da população eram os balneários
públicos (Tarumã, Ponta Negra, Ponta da Bolívia, Parque 10 de Novembro, Mindu,
Prainha) e privados (Guanabara, Tucunaré, Madrigal, Las Palmas, Caiçara, Bosque),
os poucos cinemas existentes (Avenida, Guarany, Ypiranga, Vitória, Ideal,
Odeon, Politheama e Éden) e os jogos de futebol aos domingos, ainda disputados
exclusivamente por equipes amadoras (o futebol só seria profissionalizado em
1964).
A televisão ainda não havia chegado à aldeia e a Zona Franca
de Manaus era apenas um projeto ainda em discussão na Câmara dos Deputados.
Na verdade, Manaus era um mero entreposto comercial que
ligava a economia extrativista praticada no interior do estado com o resto do
mundo, que consumia produtos exóticos coletados da floresta como madeira em
tora, borracha, sorva, castanha, pau rosa, cumaru, breu, resinas, sementes
oleaginosas, essências aromáticas, além de animais como quelônios, peixes e seus
subprodutos (couros e peles silvestres, por exemplo).
Comerciantes e mascates de Manaus procuravam o interior do
estado em embarcações, os chamados regatões, para suprir as necessidades das
populações. Dispersas nas terras ao longo dos rios, essas pessoas se dedicavam
a atividades extrativistas.
Os comerciantes itinerantes forneciam alimentos, tecidos,
roupas, remédios e ferramentas, e, em troca, adquiriam os produtos coletados da
floresta, em uma típica operação de escambo, sem a presença de moeda – uma
relação econômica de característica feudal.
Quando a situação no interior ficava muito precária, essa
população ribeirinha migrava para Manaus, para ocupar a periferia da cidade.
Para termos uma pálida ideia da infraestrutura da cidade,
basta lembrar que a maioria dos táxis era formada por jipes, os únicos veículos
em condições de trafegar pelas ruelas esburacadas e socavões de barro e piçarra
dos bairros mais periféricos, que se transformavam em autênticos pântanos de
areia movediça durante o período das chuvas (novembro a abril).
Com o beneplácito da empresa Archer Pinto, Bianor Garcia
alugou um jipe Land Rover e, na companhia do fotógrafo Fernando Nascimento, foi
convidar pessoalmente cada grupo folclórico da cidade que ele conhecia, para
participar do Concurso Junino (o nome “Festival” só seria adotado no ano
seguinte).
Recebido com curiosidade e desconfiança, o jornalista levou
três semanas para concluir a tarefa, mas recebeu a adesão de 26 grupos (sete
bumbás, um cordão de pássaros, uma dança regional e 17 quadrilhas). A baixa
adesão foi decorrência direta do fato de que ninguém ainda sabia direito que
tipo de cachorro poderia sair daquele mato.
Com a relação dos 26 grupos embaixo do braço, Bianor Garcia
foi procurar os políticos e comerciantes locais para que colaborassem com a
infraestrutura do evento. O prefeito Gilberto Mestrinho gostou muito do projeto
e resolveu conceder uma premiação em dinheiro, no valor de Cr$ 15 mil (R$ 24
mil, em valores de hoje) para o melhor bumbá, Cr$ 5 mil para a melhor
quadrilha, Cr$ 3 mil para o melhor cordão de pássaros e Cr$ 2 mil para a melhor
dança regional.
Além disso, os três melhores colocados de cada categoria
receberiam valiosos troféus ofertados pelo vereador Ismael Benigno, presidente
da CMM, pelo deputado Xenofonte Antony, presidente da ALE, e pelo advogado
Clóvis Lemos de Aguiar. secretário estadual de Economia e Finanças.
O concurso seria realizado em três noites, no Estádio
General Osório, do 27º Batalhão de Caçadores, e estava programado para começar
no dia 12 de junho, véspera de Santo Antônio, mas foi adiado para o dia 21 de
junho, a pedido do Itamarati, por causa da futura visita a Manaus do presidente
de Portugal, general Higino Craveiro Lopes, naquela mesma data, que havia
manifestado sua intenção de assistir ao espetáculo.
A mudança de data foi bem aceita pelos manauaras porque era
a primeira vez na História que um presidente estrangeiro visitaria a
provinciana capital amazonense.
Entre os grupos participantes da 1ª edição estavam os bumbás
Corre Campo (Cachoeirinha), Mina de Ouro (Boulevard Amazonas), Flor do Campo
(Aleixo), Ás de Ouro (Matinha), Rica Prenda (Praça 14), Mineirinho (Santa
Luzia) e Canarinho (Morro da Liberdade).
O famoso bumbá Diamante, de Dona Davina Pereira Leão, que
tinha seu curral no Igarapé de Manaus, não quis participar do evento. Os bumbás
Caprichoso (Praça 14), Dois de Ouro (Educandos) e Tira Prosa (Santa Luzia)
também preferiram ficar de fora e aguardar os acontecimentos.
Na categoria quadrilhas juninas, os Caboclinhos na Soçaite
(Boulevard Amazonas), Real Madrid (Cachoeirinha), Caipiras (Praça 14), Primo do
Cangaceiro (PTB da Cachoeirinha), Mocidade (da Av. Ayrão, Praça 14), Caboclos
do Andirobal (PTB de Petrópolis), Coronel Janjão (da Dr. Machado, Centro),
Matutos do PTB (PTB de São Francisco), Curupiras (da Ramos Ferreira, Centro),
Los Caipiras Andaluzes (Adrianópolis), Forró do Virgulino (Matinha), Última
Hora (Cachoeirinha), Normalistas (do Instituto de Educação do Amazonas,
Centro), Maria Bonita (Cachoeirinha), Etemienses (da Escola Técnica de Manaus,
Centro), Rouxinol (da Escola de Música Santa Terezinha, Centro) e Ypiranguenses
(Cachoeirinha).
Na categoria danças regionais, o Centro Estudantil Plácido
Serrano, presidido pelo jovem Walder Caldas, inscreveu a Dança do Arara e a
Desfeiteira, ambas formadas exclusivamente por ginasianos do Colégio Estadual
do Amazonas.
Por sugestão do jornalista Bianor Garcia, as duas danças
acabaram se transformando em uma só sob o nome de Dança Regional do CEA.
Na categoria “cordões de pássaros”, apenas o Gavião Real
(Petrópolis) foi inscrito.
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