Os governadores
petebistas Gilberto Mestrinho e Plínio Coelho
Ao longo dos anos, o jornalista Bianor Garcia desenvolvera
uma amizade com o governador Gilberto Mestrinho que beirava à camaradagem entre
colegiais secundaristas, mas não gozava desse mesmo grau de intimidade com o
novo governador Plinio Coelho. O relacionamento entre os dois era extremamente
formal.
Por causa disso, o jornalista recebeu com surpresa a criação
de uma denominada Comissão Amazonense de Folclore (CAF), feita meio no
afogadilho pelo governador, e que, de certa forma, passaria a dar as cartas no
festival. Era o preço que Bianor Garcia teria de pagar por ser
diretor-executivo de uma festa popular promovida pela iniciativa privada, mas
custeada com verbas públicas. O jornalista ficou na dele.
Em linhas gerais, a Comissão Amazonense de Folclore era um
feudo da família Monteiro (Mário Ypiranga Monteiro, Marita Socorro Monteiro,
Maurílio Galha Monteiro e Azemilton Trajano Monteiro), secundado por três
intelectuais de alto coturno: Padre Raimundo Nonato Pinheiro Filho, Pedro
Amorim e André Vidal de Araújo.
O professor,
historiador e folclorista Mário Ypiranga Monteiro
Defensor intransigente da pureza do folclore de raiz
indígena e “cagarregrense” por convicção e natureza, com certidão registrada em
cartório, Mário Ypiranga Monteiro abominava o formato do festival (com
premiação em dinheiro para os vencedores de cada categoria) e tinha um ódio
quase homicida das “famigeradas quadrilhas caipiras”, que ele considerava
“grotescas”, “de mau gosto” e “a maior deturpação do folclore” na medida em que
tais “caipiradas” nada mais eram do que “uma sórdida crítica ao homem rural”.
– Todos os anos surgem novos bois, novos cordões de bichos,
novas quadrilhas, regulando-se essas novidades pela promessa de excelentes
prêmios – reclamava o historiador. – A competição abre o apetite das massas,
daí a criação de novos conjuntos de vida efêmera. Isto só pode degenerar em
depauperamento das tradições, em anarquia, que indivíduos “intelectualizados”
não enxergam, na preocupação de realizar seus próprios desideratos, conseguir
votos nas eleições, abiscoitar uns cobres extras...
Apesar da objeção da minoria qualificada (Padre Nonato,
Pedro Amorim e André Vidal de Araújo), a Comissão Amazonense de Folclore, pela
maioria de seus membros (4 a 3), decidiu que não haveria mais premiação em
dinheiro para os vencedores: o governador daria uma ajuda de custo antes e
depois do festival para todos os grupos inscritos e um diploma de participação.
Como não haveria disputa, também não haveria a necessidade de dar troféus aos grupos participantes já que seria apenas um
“festival de exibição”.
A CAF também criou novas categorias e subcategorias para os
grupos inscritos, incluindo as “competições lúdicas” (nome pomposo para as
antigas brincadeiras de crianças em colégios, durante o período junino) e
aboliu definitivamente as danças internacionais, que considerava desvinculadas
de nossa realidade. Por último, também foi reduzido o número de bancos de
madeira no entorno do tablado, supostamente para dar maior visibilidade ao
público.
O “cagarregrense-mor” da CAF acreditava que, com essas
simpáticas medidas, o festival ficaria mais dinâmico e atrativo. O número de
grupos inscritos, pouco mais que a metade do ano anterior, provaria exatamente
o contrário.
Naquele ano, o auxílio financeiro dado pelo governo ficou
assim distribuído. Bumbás: Cr$ 80 mil (em valores de hoje, R$ 12 mil).
Garrotes, Tribos e Quadrilhas adultas: Cr$ 60 mil. Quadrilhas mirins: Cr$ 20
mil. Danças Regionais e Pássaros: Cr$ 30 mil. Após as apresentações no
festival, os grupos receberiam um segundo aporte de mesmo valor.
Defensor perpétuo do multiculturalismo, o jornalista Bianor
Garcia convenceu a direção da Empresa Archer Pinto a incluir algumas danças
internacionais, como atração extra do festival, o que lhe valeria o ódio eterno
do “purista” Mário Ypiranga Monteiro.
No dia 5 de junho, quarta feira, o matutino O Jornal
publicava uma matéria intitulada “Festival chama o Brasil para conhecer o
folclore”, mostrando que, aparentemente, Bianor Garcia continuava no comando da
festa:
Faltam
exatamente 11 dias para o início do VII Festival Folclórico do Amazonas. Cada
hora que passa, maior a expectativa do povo, de todas as correntes sociais. A
nossa redação é visitada, diariamente, por centenas de pessoas. Umas querem
saber quando vão desfilar. Outros pedem permanentes. Estes pedem orientações.
Aqueles procuram informações sobre a venda de guloseimas. É a azáfama de todo
os anos. É a complementação de um trabalho que se inicia nos primeiros meses de
abril ou logo após o carnaval, como aconteceu dessa vez.
E
enquanto grupo de carpinteiros, pintores, eletricistas e operários limpam,
enfeitam, levantam o tablado e armam o sistema de iluminação lá no Estádio
General Osório, palco da amis bela festa típica do país, o governador Plínio
Coelho dirige convite às autoridades federais, a governadores de outros
Estados, ao mesmo tempo que recebemos a confirmação da vinda de folcloristas do
Pará, do Rio de Janeiro, de São Paulo, etc. os dias se passam celeremente. As
nossas energias dão tudo, esgotam-se, com o fito de promover um festival à
altura da exigência do público e repetir os feitos anteriores, cujos reflexos
são hoje o motivo da curiosidade e do interesse de homens de vulto nesse país.
Está
praticamente concretizado o nosso trabalho. Os grupos folclóricos, que ascendem
a mais de cinquenta, ensaiam, preparam-se, compram fantasias, pedem
orientações, reúnem amigos para ajuda-los, recebem auxílio do Governo. A
montagem da festa, em si, caminha sem atropelos maiores. E o povo, que a tudo
observa, não pensa noutra coisa. Sabe ele que terá 15 dias de alegria, de
folguedos sadios, de espetáculos maravilhosos, de exibições fantásticas. Falta
pouco, evidentemente, para o VII Festival que terá o apoio do governador do
Estado, das Indústrias I. B. Sabbá, do Prefeito, do GEF e de tantos outros.
ENSAIO
GERAL DOS MANAÚ – A Tribo dos Manaú, na Av. Japurá, 1.059, na Praça 14,
realizará o seu ensaio geral, com uma bonita festa, no próximo sábado, à noite,
para a qual recebemos convites. Aquele grupo campeão do ano passado está se
preparando para voltar ao trabalho do festival, com a pinta de campeão que é de
fato e de direito. Os seus amigos, os seus simpatizantes e os curiosos podem
comparecer, para emprestar o brilhantismo de sua presença e o seu apoio.
IBGE
NO FESTIVAL – O Delegado Regional do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatísticas), como já divulgamos anteriormente, recebeu ordens de seus
superiores da alta direção da aquela autarquia, para recolher de nosso festival
folclórico tudo que for indispensável à elaboração de uma plaqueta exclusiva do
folclore. O sr. José de Souza e Pontes, delegado regional do IBGE, entrou em
entendimento com o jornalista Bianor Garcia, diretor-executivo do festival, que
lhe fornecerá fotografias, enredos, letras e notas musicais das toadas, dos
cânticos, etc, dos bumbás, garrotes, tribos, pássaros, danças, tudo enfim que
se puder extrair das apresentações dos conjuntos participantes da maior e da
mais linda festa típica do Brasil.
ATENÇÃO,
DIRIGENTES DOS BUMBÁS! – Pedimos que providenciem, com urgência, o envio das
toadas dos bumbás e garrotes, que serão apresentadas durante o festival. Os
donos destes grupos devem manda-las ao jornalista Bianor Garcia, manuscritas ou
à máquina, antes do dia 16, para serem arquivadas no IBGE e na Comissão
Amazonense de Folclore.
PERMANENTES
– Continuamos avisando aos nossos leitores e amigos que desta vez não será
possível atender a todos que nos pedem permanente para sentarem nos bancos
contíguos ao tablado. O preço da madeira subiu e em consequência foi reduzido o
número de bancos. Esperamos que todos compreendam que não estamos negando os
permanentes, pois não podemos atender a quanto a nós se dirigem, porque haverá
número limitado e já praticamente esgotado. Terão prioridade as famílias de
outros Estados, turistas, convidados de honra, militares, etc.
VENDA
DE GULOSEIMAS – Somente a partir do dia 10 o jornalista Bianor Garcia
distribuirá as permissões aos vendedores ambulantes, para que instalem suas
bancas de guloseimas. Previne-se, também, que haverá algumas restrições quanto
ao produto a ser exposto na quadra. Os interessados devem procurar a nossa
redação, depois do dia 16, no horário das 10 às 12 horas, pessoalmente,
evitando enviar encarregados ou meninos, para os entendimentos.
ÔNIBUS
PARA O ESTÁDIO – Em que pese o programa deste ano vise terminar os espetáculos
um pouco mais cedo do que no ano passado, mesmo assim entramos em ligações com
o Delegado do Trânsito, para que sua senhoria estude uma maneira das companhias
particulares de ônibus fazerem linhas especiais, à noite, depois das 22 horas,
pelo Estádio General Osório, para atender ao povo, que ali se comprime às
primeiras horas da noite.
No dia 7 de junho, sexta feira, uma matéria do matutino O
Jornal, intitulada “45 Danças, 22 Autos Populares, as Rodas de Contraponto,
Lúdicas e outras atrações”, já mostrava claramente quem estava dando as cartas
no pedaço:
Faltam,
hoje, somente nove dias para o VII Festival Folclórico do Amazonas. O dia 16
vem aí, anunciando festas, alegrias, explosões de entusiasmo, risos, danças,
volteios, luzes, manjares. O povo delas participa, como dono autêntico, pois é
em sua homenagem que se criou e se realiza a maior e a mais linda festa deste
país.
Obedecendo
à recomendação expressa e subsidiária da Comissão Amazonense de Folclore, o
jornalista Bianor Garcia procedeu ontem à classificação geral de todos os
grupos participantes, nas suas diversas categorias. Esse quadro poderá ser
aumentado ou diminuído, dependendo da organização de alguns conjuntos e da
situação de recursos financeiros que outros atravessam. Até aqui, porém, é esta a classificação
folclórica dos inscritos:
AUTOS
POPULARES – Bumbá Corre Campo. Bumbá Tira Prosa. Bumbá Pai do Campo. Bumbá
Caprichoso.
SUBCLASSIFICAÇÃO
DE BUMBÁS – Garrote Teimosinho. Garrote Luz de Guerra. Garrote Treme Terra.
Garrote Malhado. Garrote Tira Teima. Tribo dos Iurupixunas. Tribo dos Manaú.
Tribo dos Andirás. Tribo dos Guaranis. Pássaro Corrupião. Pássaro Japiim. Dança
do Congo. Dança Caninha Verde. Dança da Ciranda. Dança dos Africanos. Cordão
das Lavadeiras. Caboclinhos do Surara. Brigue Independência.
DANÇAS
– Quadrilha Adulta: Flor do Plano. Araruamas na Roça. Real Madrid na Roça.
Caboclos do Tapauá. Mocidade na Roça. Caiçaras na Roça. Geraldinos no Roçado.
Caboclinhos do Araçá. Cabras do Lampião. Primo do Cangaceiro. Quadrilha Mirim:
Caboclinhos de Brasília. Filhos de Lampião. Firim Firim na Roça. Brotinhos de
Amanhã. Americanos na Roça. Outros: Cacetinho. Arara. Desfeiteira. Tipiti.
Imperiais. Camaleão. Tapuia e o Branco. Desafio dos Amos.
RODAS
DE CONTRAPONTO – Flor do Lírio. Lundu do Gambá.
LÚDICAS
– Jogo do Aro. Corrida do saco. Corrida com ovo na colher. Vestir roupa
correndo. Corrida de dupla. Andar sem quebrar garrafa. Comer maçã. Engolir fio.
Procurar dinheiro na serragem. Quebrar pote.
OUTRAS
EXIBIÇÔES – Além dessas categorias já disciplinadas, teremos outras que serão
complemento da festa. Dente elas, destacam-se o Balé Folclórico Japonês, Danças
Madeirenses (da Ilha da Madeira, Portugal), Danças Mexicanas, escolas de
acordeão Hélio Trigueiro e Santa Terezinha, os garotos do Educandário Gustavo
Capanema, do Barão do Rio Branco, do José Paranaguá, do Princesa Isabel e as
Musas do Ritmo. Não faltarão, por certo, as atrações artísticas. Uma delas, se
tudo sair a contento, será a apresentação do Trio Fluminense, constituído de um
grupo de mulatos componentes da Escola de Samba “Salgueiros”, do Rio de
Janeiro, que estão em Manaus, exibições de judôs e tantos outros.
BAR-RESTAURANTE
NA PISCINA – Soubemos que está sendo organizado um bar-restaurante na piscina
do Estádio General Osório, para atender a todo o povo, independente de qualquer
formalidade. É uma lacuna que se vai superar no festival folclórico. Nesse bar,
o público encontrará cerveja, uísque, peixada regional (cozida, assada e
frita), galinha cheia, pato no tucupi, cabritos assados, etc. Não haverá
reserva de mesa. Qualquer pessoa, sozinho ou com sua família, poderá ocupar
aquele bar-restaurante a partir do dia 15 vindouro, à noite.
PERMANENTES
– Estamos no dever de prestar ao público e aos nossos amigos esta explicação:
infelizmente, este ano, não poderemos atender a todos os que nos pedem
permanentes para ocupar os bancos, no gramado. Isso, pelo seguinte: o tablado de
exibições cresceu na altura e no comprimento, faltando, em consequência,
madeirame para fazer-se o número de bancos que fizemos no festival passado.
Ademais, com o tablado nessas condições, o povo terá uma visão ampla, limpa,
sem atropelos e sem dificuldades, em qualquer área do estádio. Até as crianças
conseguirão divisar amplamente tudo o que ocorrer no palco da festa. Além
disso, corrigiremos a superlotação já havida.
São essas as razões que nos obrigam a esclarecer a quantos delas
precisem, esperando o perdão e a compreensão de todos. A disponibilidade que
teremos será reservada exclusivamente às autoridades constituídas, aos
convidados de honra do Governo, da nossa empresa, dos membros das delegações de
estudos folclóricos, representantes diplomáticos, etc.
Pela simples leitura dessa matéria jornalística já dava para
perceber que o Festival Folclórico do Amazonas, a partir desse ano, começaria a
enfrentar problemas com a burocracia estatal que fatalmente resultaria em perda
de qualidade e diminuição gradativa de grupos inscritos. Seria apenas uma
questão de tempo.
Comecemos pela justificativa mambembe de que faltou madeira
para fazer o mesmo número de bancos do ano anterior. As serrarias sempre
prestigiaram o festival, como pode ser visto pelos reiterados agradecimentos do
jornalista Bianor Garcia desde os primeiros festivais, e nunca faltou madeira
em Manaus.
Ocorre que, nos festivais anteriores, Gilberto Mestrinho, um
eterno bonachão, gostava de se misturar com a população, para tirar um dedo de prosa
com os anônimos transeuntes. Ele não tinha nenhum problema em dividir o mesmo
banco de madeira com o zé povinho.
Circunspecto e quase sempre de cenho franzido, Plinio
Coelho, ao contrário, sempre teve uma postura autoritária, aristocrática, como
se estivesse acima do bem e do mal. A transformação dos bancos de madeira em
espaço vip do governador e de seus convidados foi a maneira encontrada pela
elite para distanciar-se do povaréu. Simples assim.
A “recategorização” dos grupos folclóricos feita pela
Comissão Amazonense de Folclore também soou como uma piada de mau gosto. Não
vamos entrar no mérito dessa maluquice de incluir “Cordões de Pássaros” e
“Tribos Indígenas” (que possuem uma dinâmica própria e um desenvolvimento
cênico específico) como meros apêndices dos bois-bumbás, mas o que dizer da
bobajada chamada de “Rodas de Contraponto”, em que o próprio termo ou
equivalente não existe em nenhum outro lugar do mundo? O grupo Flor do Lírio
mostrava a dança do carimbó, enquanto o grupo Lundu de Gambá mostrava
exatamente isso, a dança do lundu e a do gambá.
Será que foram categorizados desse jeito porque os
brincantes desenvolviam a brincadeira se posicionando em forma de roda? E desde
quando, em termos musicais, a cantoria do tipo pergunta-e-resposta, muito comum
em grupos de origem africana, incluindo o lundu, o gambá, o carimbó e a
capoeira, poderia ser chamada de “roda de contraponto”?
Para ficar em um exemplo bem vulgar, contraponto é aquilo
que acontece no final da canção “Roda Viva”, com Chico Buarque e MPB-4 fazendo
uma espécie de cacofonia musical, ou seja, duas músicas diferentes sendo
cantadas ao mesmo tempo, mas ainda assim soando perfeitamente harmonizadas. Não
existe nada parecido com aquilo nas cantorias do carimbó ou nas do lundu.
De qualquer forma, o festival daquele ano trazia algumas
boas novidades. A ultra-hot-sexy Dança da Ciranda, do Colégio Estadual Sólon de
Lucena, que depois daria início a uma verdadeira febre na cidade. A lindíssima
Dança Caninha Verde, de Educandos, com todos os brincantes de bermudões ou saias
verdes e blusas amarelas, representando as cores da folha e da flor da
cana-de-açúcar. A Dança do Camaleão, com seus luxuosos trajes de época que nos
remetiam ao período áureo da borracha. A Dança dos Africanos, em que homens
usando máscaras pretas de lábios vermelhos dançavam em companhia do Curupira,
Bicho Folharal e Onça Pé de Bola. A Dança dos Imperiais, que tinha como
coreografia vários passos tradicionais de danças do II Império.
O Cordão das Lavadeiras e os Caboclinhos do Surara, a
exemplo do Brigue Independência, já eram conhecidos do público amazonense por
se tratarem de simples blocos carnavalescos. Iguais a eles (alguns até mais bem
organizados e bonitos, como As Melindrosas, de São Francisco) havia uma centena
em Manaus.
Questionado a respeito da inclusão de tais grupos no
festival, o folclorista Mário Ypiranga Monteiro, o “chairman” da CAF, deu a
seguinte explicação:
– Marrelógico que o Cordão das Lavadeiras é folclore. Ele
possui uma tradição interrompida faz bem uma trintena ou mais de anos. É um
auto popular porque descansa num processo de dramatização. Se fosse dança seria
caracterizado pela coreografia especial. Como outros cordões ou ranchos, muitos
já desaparecidos, a exemplo dos Linguarudos, Criadores, Regadores, Palhaços,
Jardineiras, Caboclos Surara, Caboclinhos, Caboclolindos, etc, o cordão
movimenta-se dentro de um enredo simples com referência a técnicas de lavar e
engomar roupas. Asseverar o contrário é ignorar completamente a classificação
técnica da ciência folclórica.
No dia 15 de junho, sábado, véspera da abertura do festival,
o senador amazonense Antóvila Rodrigues Mourão Vieira faleceu em sua
residência, na Guanabara, vítima de um fulminante infarto do miocárdio. Tão
logo soube da notícia, o governador Plinio Coelho decretou luto oficial por
três dias e a abertura do festival foi transferida para o dia 19, quarta feira.
Foi a primeira e única vez na história que o festival teve sua festa de
abertura no meio da semana.
Como nos anos anteriores, uma multidão estimada em 80 mil
pessoas lotou o estádio. Entre os presentes na festa de inauguração estavam o
governador Plino Coelho, o prefeito Josué Cláudio de Souza, o senador Artur
Virgílio Filho, o deputado federal Paiva Muniz, o general Paulo Torres,
comandante do GEF e da GFM, o deputado estadual Anfremon Monteiro, presidente
do Legislativo, o desembargador João Correa, presidente do Judiciário, a
empresária Maria de Lourdes Archer Pinto, diretora da Empresa Archer Pinto
Ltda., chefes de repartições federais, industriais e comerciantes, que tomaram
assento na tribuna de honra do evento.
A mudança das datas de apresentação criou uma nova dor de
cabeça para a Comissão Organizadora. Devido ao baixo número de grupos
inscritos, as apresentações estavam previstas para ocorrerem durante apenas
seis dias (de segunda a sábado). Com o festival começando no meio da semana, os
organizadores teriam de encontrar atrações suficientes para preencher os onze
dias de festa, de forma que pudessem encerrar o festival tradicionalmente em um
domingo, com o já tradicional desfile coletivo.
O jeito foi apelar novamente para o velho jeitinho
brasileiro da enquete: a população deveria telefonar para a redação dos dois
jornais e votar em qual grupo gostaria de ver fazendo uma segunda apresentação.
Deu certo. Para atender os inúmeros pedidos, as exibições foram mescladas entre
grupos que estavam se apresentando pela primeira vez e grupos que estavam se
apresentando a pedidos. Como sempre, a população aprovou a novidade.
No sábado, 29, por exemplo, Dia de São Pedro e último dia de
apresentação dos grupos concorrentes, a ordem de apresentação foi a seguinte. À
tarde. Quadrilha Mirim Brotinhos de Amanhã, Escola de Acordeão Santa Terezinha
e Quadrilha Mirim Firim Firim na Roça. À noite. Quadrilha do Rio Preto da Eva
(convidada), Quadrilha Mocidade na Roça, Garrote Malhado, Quadrilha Geraldinos
no Roçado, Balé Folclórico Japonês, Bumbá Caprichoso (a pedido), Tribos dos
Iurupixunas (a pedido), Dança da Ciranda (a pedido), Bumbá Corre Campo (a
pedido), Bumbá Tira Prosa (a pedido), Caboclinhos Surara (a pedido), Danças
Mexicanas (a pedido), Dança do Congo (a pedido), Garrote Teimosinho (a pedido),
Quadrilha Araruama na Roça (a pedido), Dança do Cacetinho (a pedido), Dança dos
Africanos (a pedido) e Bumbá Pai do Campo (a pedido).
Como todos os conjuntos receberiam apenas um diploma de
participação, a Comissão Julgadora se limitou a eleger oficialmente os
seguintes destaques:
Rainha do Festival: Cleize de Souza (Tribo dos Iurupixunas).
Rainha de Beleza: Maria Helena (“Maria Bonita” da Quadrilha
Primo do Cangaceiro).
Rainha Mirim: Nina Sotero (Quadrilha Brotinhos do Amanhã)
Melhor Sanfoneiro: Fátima Fernandes (Dança da Ciranda).
No dia 26 de junho, no salão nobre do Palácio Rio Negro, o
Chefe da Casa Militar, coronel Neper Alencar, em nome do governador Plinio
Coelho, entregou os ofícios que davam direito à segunda parcela do auxílio
financeiro prometido aos grupos que participaram do festival.
O jornalista Bianor Garcia, presente à solenidade, agradeceu
em nome dos presentes:
– Se não fosse a ajuda e o apoio do Governador do Estado,
talvez não estivéssemos aqui ouvindo as palavras de seu representante. Os
elogios que fizeram à festa, à organização, à qualidade dos grupos, pertencem a
todos vocês. E aqueles que assim não concordam, por esse ou por aquele motivo,
para nós nada valem. Basta o estímulo, a
confiança e a solidariedade do Governo e de vocês, brincantes e
dirigentes, para nos colocarmos novamente à frente da realização do festival
folclórico. Enquanto tivermos energia, saúde e disposição para a luta,
continuaremos fazendo a festa, como uma prova de amor de amor à esta terra que
nos serviu de berço. Agradeço a todos vocês, em nome da Empresa Archer Pinto
Ltda., e os convido para o oitavo festival, que já está em franca preparação.
No dia 2 de julho, terça-feira, o Diário da Tarde publicava
uma matéria intitulada “Pranto de angústia e de dor na Amazônia brasileira”:
Depois
da alegria, do entusiasmo, do delírio e do empolgamento do nosso povo, veio a
dor, a tristeza e a saudade. O VII Festival Folclórico foi marcado e enlutado
por duas vezes: a morte de Mourão Vieira, na véspera da inauguração, e a de
Bruno Menezes hoje, exatamente quando temos dois dias do encerramento. Tanto um
como o outro mereciam e ainda merecem as homenagens do nosso povo. Bruno de
Menezes, porém, velho educador, homem culto e simples, inteligente e amigo, foi
desta vez uma das peças importantes do Festival. Há muito que desejávamos
trazê-lo a Manaus, nesta época, por considerarmos o saudoso amigo e colaborador
talvez o mais erudito e estudioso em folclore da região amazônica.
A sua
vinda foi sacrificada: ora por falta de avião, ora por doença. Mas veio. Chegou
aqui entusiasmado. Conheceu todos os grupos, palestrou com os brincantes, fez
conferências e recitais no Sesc-Senac, divertia-se com os membros do Clube da
Madrugada e conversava com os intelectuais amazonenses, que muito o queriam bem
e estimavam. Ontem foi à “Paraense Transportes Áereos” e confirmou seu
regresso, que se daria quinta-feira. A morte, porém, implacável, colheu-o
inesperadamente, hoje pela manhã, dentro do seu apartamento, no Lord Hotel,
onde se hospedara às expensas de O Jornal e Diário da Tarde.
Contam-nos
que Bruno de Menezes acordou alegre e sorridente como era de costume. Leu os
jornais da manhã e vestira-se para ir à rua. Deveria ser homenageado hoje com
um almoço que o nosso companheiro Bianor Garcia lhe preparara, do qual
participaria, também, o folclorista da Guanabara sr. Nóbrega Fontes. Chegou a
palestrar com os rapazes da portaria do hotel e, ao voltar ao seu apartamento
para dedicar um livro do sr. Nóbrega Fontes, caiu fulminado por um infarto do
miocárdio. Conduzido ao Pronto Socorro, ali chegou, porém, morto.
Perderam
o folclore paraense e as letras da terra vizinha, um nome conhecido e projetado
em todos os círculos intelectuais do país. Perdemos nós, também, um amigo e um
colaborador. Um homem despido de vaidades, de orgulho, embora fosse realmente
um cultor da poesia, da oratória e do folclore. Conhecia, e não se julgava o
único, todas as motivações folclóricas do Amazonas, do Pará e do Maranhão.
PESAR
DO GOVERNADOR DO ESTADO – A notícia do falecimento de
Bruno de Menezes chegou ao conhecimento do governador Plinio Coelho, através de
um representante dos nossos Diários. Sua Excia. Mandou o coronel Neper Alencar,
Chefe da Casa Militar, apresentar votos de pesar e promover o embalsamento do
corpo do saudoso folclorista. O sr. Bruno de Menezes, a propósito, tinha admiração
especial pelo Chefe de Estado e foi por esse convidado a assistir ao Festival Folclórico.
“PARAENSE”
FARÁ O TRANSPORTE DO CORPO – A “Paraense Transportes Aéreos”, renovando o seu
gesto generoso a tudo que diz respeito à Amazônia, fará depois de amanhã,
quinta-feira, às 6 horas, o transporte do corpo do saudoso Bruno de Menezes,
devendo acompanha-lo a irmã Gertrudes Menezes, do Preciosíssimo Sangue, filha
do emérito educador paraense. O embalsamento está sendo providenciado pelo dr.
Agostinho Barbosa, Assessor de Saúde do Governador do Estado e deverá ficar,
logo mais, exposto à visitação pública, na sede da Academia Amazonense de
Letras.
ÚLTIMA
HOMENAGEM DO VII FESTIVAL – Como última homenagem a Bruno de Menezes,
convidamos todos os brincantes do VII Festival a comparecerem à sede da
Academia Amazonense de Letras, na Rua Ramos Ferreira, esquina com a Tapajós.
Bruno era um admirador do Festival, e como tal merece, agora, a nossa sentida
homenagem. Convidamos por igual a colônia paraense fazer o mesmo, pois como se sabe, Bruno de
Menezes era um dos filhos mais ilustres da terra marajoara.
No dia 16 de julho, o governador Plinio Coelho firmou um
convênio com o folclorista Mário Ypiranga Monteiro, secretário da Comissão
Amazonense de Folclore, que tinha como objetivo a proteção e o desenvolvimento
do folclore no Amazonas.
Entre outras baboseiras, aqui pinçadas aleatoriamente, o
convênio, de viés autoritário e centralizador, rezava o seguinte:
1. O
Governo do Estado do Amazonas encaminhará à Comissão Amazonense de Folclore
(CAF) os pedidos de publicação de obras que versarem assuntos folclóricos ou
correlatos e cujo financiamento deva ocorrer por conta dos cofres estaduais, a
fim de proteger-se a autenticidade dos fatos folclóricos e evitar-se
explorações absurdas por parte das pessoas não categorizadas, que se conhece
geralmente pela denominação de “fakeloristas”, fazedores de folclore;
2.
Todo e qualquer conjunto folclórico, festival de natureza folclórica ou que
tenha pelo menos essa denominação ou organização com esse nome ou congênere,
que pretenda exibir-se na capital ou fora do Estado, só poderá fazê-lo mediante
a fiscalização direta da Comissão Amazonense de Folclore (CAF). Quando se
tratar de concessão de auxílio financeiro, este será dado através da secretaria
da Comissão Amazonense de Folclore (CAF), que para isso fornecerá ao Governo do
Estado relação pormenorizada dos grupos genuinamente folclóricos que estiverem
habilitados a apresentações públicas. Tratando-se de entidades de caráter
comercial que visem a exploração do folclore sob a legenda de turismo, dentro
ou fora do Estado, só será concedida licença para fazê-lo mediante o pagamento
da taxa de cinco mil cruzeiros (Cr$ 5.000,00), cuja metade reverterá em
benefício de uma casa de caridade. A licença para o funcionamento do conjunto
ou conjuntos folclóricos só será expedida depois de comprovada a autenticidade
dos motivos folclóricos. A outra metade da taxa se incorporará ao patrimônio da
Comissão Amazonense de Folclore para consolidar um fundo de propaganda e
expansão do folclore local.
3. O
Governo do Estado do Amazonas aprovará em tempo oportuno a realização de
Congressos, Semanas de Folclore ou Festivais Folclóricos, na capital ou nos
municípios do Estado, conferindo à Comissão Amazonense de Folclore (CAF) plenos
poderes para organiza-los, dirigi-los e oferecer-lhes assistência técnica,
material e moral.
4. A
Comissão Amazonense de Folclore (CAF) se obriga por este convênio mútuo a
cooperar permanentemente com o Governo do estado do Amazonas no estudo e
soluções de problemas atinentes ao artesanato em geral, quer como iniciativa
privada, quer como processo didático, a fim de que a classe operária mantenha
viva a tradição recebida dos ancestrais, tal como ocorre vulgarmente, mas cuja
permanência é fácil de prever desapareça. Artefatos de todos os gêneros,
“figurinhas” de guaraná, leques de plumas, remos ornamentais, redes, cerâmica
popular utilitária ou adornativas, tudo isso constitui hoje fonte de renda
ativa que é preciso saber explorar e estimular, a fim de que famílias
tradicionais adquiram independência econômica, furtando-se à dependência dos
cofres do Estado.
5. A
Comissão Amazonense de Folclore (CAF) manterá um “Jornal do Folclore”, de
proporções modestas, tipo boletim, que constituirá o seu órgão oficial e terá a
mais ampla penetração no território nacional e países com que a CAF mantém
correspondência efetiva e permuta de publicação. Esse jornal será mantido com
parte das verbas destinadas à Comissão ou com subsídios outros.
Em outras palavras, os “cagarregrenses” pretendiam, por meio
desse convênio, aprovado pela Assembleia Legislativa do Estado, transformado em
lei ordinária e publicada no Diário Oficial, tornarem-se fiscais absolutos e
tutores de qualquer grupo folclórico, de Manaus ou do interior, que quisesse se
apresentar publicamente, dentro ou fora do Amazonas, dando a última palavra
sobre o que podia e o que não podia ser exibido com essa designação
(“folclórico”)! Além disso, ainda pretendia dar “pitaco” no trabalho dos próprios
artesãos amazonenses...
No dia 20 de julho, sábado, saía o primeiro número do Jornal
do Folclore, um boletim semanal de duas páginas, no formato meio A4, que era
encartado no jornal A Gazeta, de propriedade do governador Plinio Coelho. O
editor do boletim era o próprio Mário Ypiranga Monteiro.
Na primeira página do boletim, o editorial, intitulado
“Paleio no Copiar”, mostrava os objetivos da publicação:
Jornal
do Folclore era uma necessidade, quando muita confusão está ocorrendo nas
esferas mais altas do pensamento brasileiro. Somente o desejo de contribuir
para o esclarecimento e ilustração do povo nos move e esse objetivo. Repetimos
à guisa de refrão: ainda não possuímos uma consciência capaz de avaliar os
processos de tramitação da cultura nem quanto ela possui de valores
integrativos e desintegrativos. Aspiramos algum dia a construir uma ponte que
ligasse o povo e a cultura. Experimentaremos por esta, que o jornal é o melhor
veículo de penetração. O povo – elemento dinamizador da cultura popular, do
folclore, portanto – pode trazer para este recanto de páginas seus problemas
afeitos ao folclore. Não estamos fazendo uma página exclusiva nem boicotando a
cultura. Pretendemos transmitir ao povo conhecimentos e receber dele igual
parcela de conhecimentos.
O
campo do folclore amazônico é vasto e ninguém com suficiente imaginação e dotes
de avaliação poderá conceber que um só individuo possa apropriar-se do
conhecimento geral do folclore de duas ou mais regiões brasileiras. Era preciso
que tivesse o dom da ubiquidade, e por mais Pico de la Miurandola que seja, não
conseguirá jamais fazê-lo no curto prazo da vida individual. A existência do
homem é insuficiente para que ele exercite a sua capacidade aquisitiva em
determinado campo de atividades. De sorte que nós não temos nem preocupação nem
o propósito de nos consideramos donos do assunto. Apenas fazemos o melhor apara
explorá-lo, e isto já é fazer muito.
Mas
sem a cooperação do povo é que nada se faz. Este jorna, portanto, agasalhará
informações de quantos queiram dar a honra de participar conosco dessa festa de
congraçamento espiritual cujo único objetivo é tornar amis conhecido o nosso
próprio folclore e talvez o folclore estranho. Só nos reservamos um direito:
dar curso a material exclusivamente folclórico ou quando muito de antropologia
cultural ou social.
No Jornal do Folclore nº 4, publicado no dia 24 de agosto,
sábado, uma matéria publicada na seção “Noticiário” desnudava os reais
interesses da CAF e mostrava que entre os ditos populares cultuados pelo
editorialista do boletim destacava-se o famoso “comida pouco, meu pirão
primeiro”:
Já foi
entregue aos editores Sergio Cardoso e Cia. o original do primeiro tomo de Roteiro
do Folclore Amazônico, obra fundamental, de autoria do professor Mário Ypiranga
Monteiro. A obra completa está reunida em três tomos, que constituem o primeiro
volume da coleção Etnografia Amazônica planejada para vinte volumes, dos quais
são prontos oito. O governador do estado, Dr. Plinio Ramos Coelho, num gesto
que bem define a sua posição de intelectual, autorizou o pagamento de Cr$
1.360.000,00 (*) através do Departamento de Turismo, Imprensa e Propaganda,
valor do custo de composição, impressão e encadernação dos três tomos,
incluindo o serviço de clicheria, pois a obra está fartamente ilustrada.
(*) Em valores de
hoje, R$ 182 mi.
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