Na primeira (e única) vez em que vi o folguedo chamado
Cavalo Marinho, eu era um infante de dez anos e a apresentação foi feita no
terreiro da casa da dona Raimunda Nascimento, filha do Mestre Horácio do Nascimento,
na Rua Waupés, na Cachoeirinha, localizado praticamente do outro lado da rua em
que eu morava.
Sei que não era um boi-bumbá tradicional (apesar de ter um
boi-bumbá na brincadeira) porque havia figuras que não pertenciam ao auto dos
bois como burrinha, onça, diabo e a própria morte. O que mais me chamou a
atenção, entretanto, foi os dois sujeitos com os rostos pintados de pretos que
percutiam uma bola de bexiga no próprio corpo fazendo um barulho muito
engraçado.
Também nunca mais me esqueci dos versos cantados pelos
brincantes, que quase dez anos mais tarde seriam gravados pelo Quinteto Violado
e se transformaram em uma de minhas músicas de cabeceira: “Vem meu boi bonito /
Vem dançar agora / Já deu meia noite / Já rompeu a aurora / Cavalo marinho / Chega
mais pra frente / Faz uma mesura / Pra toda essa gente / Cavalo marinho / Dança
no terreiro / Que a dona da casa / Tem muito dinheiro / Cavalo marinho / Dança
na calçada / Que a dona da casa / Tem galinha assada / Cavalo marinho / Já são
horas já / Dá uma voltinha / E vai pro teu lugar / Vem meu boi bonito / Vem
vamos embora / Já deu meia noite / Já rompeu a aurora”
Nunca me esqueci daquela apresentação, que durou no máximo
40 minutos, por um detalhe curioso: na época, eu era viciado em HQs e tinha uma
predileção especial por Aquaman, o Homem Submarino, publicado pela Editora
Brasil-América (Ebal), com desenhos e argumentos de Paul Norris e Mort
Weisinger.
Salvo engano, Aquaman foi o primeiro mutante da DC Comics, porque
era filho de um marinheiro terráqueo com uma atlante.
Nas suas aventuras submarinas, ele cavalgava um cavalo
marinho, que era o sonho de consumo de todos os moleques do Grupo Escolar
Getúlio Vargas, onde eu cursava o quarto ano primário (o saudoso artista
plástico Jorge Palheta dividia comigo a mesma carteira escolar).
Quando soube que o Cavalo Marinho iria se apresentar na casa
da dona Raimunda, fui um dos primeiros moleques a chegar ao local. Saí de lá
frustrado, porque o cavalo marinho com que eu sonhava acordado não tinha nada a
ver com os personagens que lá se apresentaram. Choses.
Para muitos historiadores, o Cavalo Marinho é um grande
teatro popular de rua, de origem portuguesa, que se adaptou às raízes e
costumes do povo da Zona da Norte da Mata de Pernambuco, Alagoas e agreste da
Paraíba.
O folguedo mistura música, canto (toadas), dança e poesia
(loas). A encenação é acompanhada por instrumentos musicais como a rabeca, o
pandeiro, o reco-reco e o ganzá, que são tocados pelo “banco” (nome dado ao
grupo de músicos que toca sentado num banco).
A brincadeira acontece durante uma noite inteira, em roda
fixa, e conta também com uma série de danças tradicionais, tais como o coco, o
mergulhão e as danças de São Gonçalo, jerimum, Marieta, cobra e roseira. Só ao
raiar do dia é que surge o boi, já na sequência final da brincadeira.
Os personagens refletem a sociedade colonial da Zona da Mata
Nordestina: Mateus e Bastião trazem o rosto pintado de preto e representam a
forte presença negra na empresa açucareira; o capitão, montado em seu cavalo,
representa o grande latifundiário, dono do engenho; o guarda, subserviente ao capitão,
é o elemento opressor a serviço do poder político; os galantes e as damas
representam a aristocracia que se desenvolveu em torno da cultura da cana de
açúcar.
O auto possui mais de 70 personagens sendo as figuras
folclóricas divididas em três categorias: humanas, fantásticas e animais.
Atualmente, os grupos de Cavalo Marinho da Zona da Mata
Norte Pernambucana estão concentrados numa região com pequenas cidades.
Entre eles estão o Cavalo Marinho do Mestre Zé de Bibi, onde
se encontra o primeiro e único museu do cavalo marinho do Brasil, Cavalo
Marinho Estrela de Ouro, de Mestre Biu Alexandre, Sebastião “Martelo”,
Aguinaldo Silva e Fábio Soares, e Cavalo Marinho Estrela Brilhante, de Mestre Antonio
Teles, ambos em Condado.
O Cavalo Marinho Boi Pintado, de Mestre Grimário, e o Cavalo
Marinho Mestre Batista, do Mestre Mariano Teles, estão em Aliança.
O Cavalo Marinho Estrela do Oriente, de Mestre Inácio
Lucindo, está em Camutanga.
O Cavalo Marinho Boi Maneiro, de Mestre Pedro Luiz, está em
Itambé.
O Cavalo Marinho Boi Brasileiro, de Mestre Biu Roque, está em
Itaquitinga.
O enredo do Cavalo Marinho concentra-se em torno do Capitão
Marinho, um grande proprietário rural que tinha deixado suas terras sob a
vigilância de dois negros, Mateus e Sebastião, enquanto viajava para Portugal.
O capitão deseja celebrar a volta dele às suas terras com um
baile a céu aberto em louvor dos Santos Reis Magos, para o qual foram
convidados os galantes e as damas. O capitão organiza não só baile, mas também
preside todo o folguedo e comanda a brincadeira através do toque do apito.
Para ajuda-lo a organizar o terreiro onde ocorrerá a festa,
Marinho chama os ditos Mateus e Bastião, personagens bufões responsáveis, em
grande parte, pela comicidade do folguedo.
Os dois negros dividem a mesma mulher, Catirina, e carregam
com eles uma bola de bexiga, que percutem contra o corpo para auxiliar na
musicalidade.
Mateus e Bastião, entretanto, se sublevam, e passam a se
dizer donos do terreiro desde a época em que o capitão viajou para Portugal.
O Capitão Marinho convoca então o Soldado da Guarita, que se
utiliza da força para restabelecer a ordem.
Quando a situação parece estar normalizada, surge o Empata-samba,
arquétipo do homem “valentão” que, como sugere o nome, impede a festividade de
prosseguir. Quase todos os personagens usam máscaras engraçadíssimas.
As discussões, brigas e confusões prosseguem. Na sequência,
entram em cena novos personagens ligados ao ambiente típico dos engenhos de
açúcar como Mestre Ambrósio, Valentão, Matuto da Goma, Vaqueiro, Cangaceiro,
Mané Joaquim e a Véia do Bambu.
Entre os seres fantásticos, surge o Caboclo de Urubá, uma
entidade sobrenatural que canta todas as linhas de Jurema, a alma penada Parece
Mas Não É, o Diabo, a Morte, o Babau e o Jaraguá. Os animais são o Boi, a Ema, o
Cavalo, a Onça e a Burra.
Quando, finalmente, entra em cena Mané do Baile, o baile se
reinicia dessa vez pra valer. A apresentação atinge o seu clímax com a chegada
dos galantes e das damas, que realizam a dança dos arcos.
Esta modalidade de dança coreografada apresenta visíveis
semelhanças com a dança de São Gonçalo – uma espécie de baile devocional de
origem portuguesa que ainda é praticado em diversos estados brasileiros,
sobretudo no Nordeste.
Os galantes, em pares ou em círculo, seguram nas pontas dos
arcos de madeira enfeitados de fitas, realizando, então, complexas
coreografias. A apresentação termina com a entrada, bailado, morte e
ressurreição do boi.
Em Manaus, o Cavalo Marinho do pernambucano Jessé Gomes da
Silva, o Mestre Jessé, que tinha seu local de ensaios na Rua Itacoatiara, entre
as ruas Borba e Waupés, na Cachoeirinha, se apresentou algumas vezes no
Festival Folclórico do Amazonas, nos anos 60, mas depois desapareceu
inexplicavelmente sem deixar vestígios.
Umas das razões possíveis foi o fato de a brincadeira durar
uma noite inteira, o que afugentava, por razões óbvias, os possíveis
interessados em participar do cordão.
Na apresentação na casa da dona Raimunda, o grupo contava
com 25 figurantes. Desconfio que aquela foi uma das últimas exibições públicas
da brincadeira.
Em outras palavras, o Cavalo Marinho deixou de existir em
Manaus há mais de 50 anos.
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