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terça-feira, agosto 05, 2014

O samba-canção e sua trajetória sofrida



Mário Goulart

No início era a noite. E, em seguida, o bar, o chope, a conversa confidencial ou inconsequente. Depois veio o poeta, a letra no guardanapo e a caixa de fósforos. Não demorou nada e surgiu o resto: o violão, o pandeiro, o cavaquinho, o tamborim – e fez-se a roda de samba.

Talvez não tenha sido assim, ou nessa ordem, mas a coisa aconteceu mesmo e não faz muito tempo: Donga gravou o primeiro samba, Pelo telefone, em 1917. Uns dez anos depois chegava o samba-canção, que vinha, naquele seu jeito lento e romântico, para nos falar de amor. Foi quando começou a tragédia.

Isto é, a divulgação da tragédia: o bate-ama, o beija-morde, o tête-à-tête amoroso – tudo isso num ritmo que era, ao mesmo tempo, samba e canção. E por ser assim meio dúbio (“A melodia canta como canção e o ritmo marca o samba e acaba não sendo nada propriamente dito”, na definição de Marisa Lira), destinava-se o samba-canção a ser um gauche na vida. Podia sentir na própria pele cada tragédia que cantava.

O povão, que sempre soube das coisas, não só apreciou a nova música como a nomeou sua porta voz legítima. Mas o chamado público mais exigente, que no Brasil pelo menos sempre foi um babaca, tapou os ouvidos, torceu o nariz e virou a cara pro samba-canção. Incrível: de quase 1930 a 1960 e pouco, quem tinha bom gosto não tinha esses discos em casa. Sérgio Porto, Carlos Lira, Sidney Miller e outros inteligentes é que sacaram, afinal, ainda que tarde, que Nélson Cavaquinho, Cartola, Ismael Silva e outros gênios faziam samba e cultura popular.

Depois da sensação acima vieram os intelectuais, atrasados como de costume. E a crítica musical nunca mais foi a mesma, virou democrata, foi obrigada a falar também de problemas populares. Quer dizer, mudou muita coisa, a partir do interesse da elite criadora, da reavaliação dos intelectuais e do reposicionamento do bando todo que, antes, só ouvia samba-canção escondido ou, declaradamente, pelos elementos exóticos que continha. Sabe quem nunca mudou nesse tempo todo? Acertou: o samba-canção.

Rádio, bolero, rock e outros

Talvez o samba-canção seja, na verdade, um felizardo. Nasceu e se criou quando o rádio no Brasil revolucionava tudo. Foi praticamente o primeiro som que o rádio transmitiu, pelo menos depois que, com o advento do anúncio (1932), a mídia passou a comandar a programação. “Quando eu comecei a compor não havia rádio nem televisão. Fazia a música no morro e no morro mesmo morria”, disse Cartola a Beatriz Borges, no livro Samba-canção, fratura & paixão. A mesma testemunha, sobre o período posterior: “(...) eu admirava muito dois compositores da época do rádio: o Oreste Barbosa e o Lupicínio Rodrigues”.

O samba-canção, portanto, começou a toda, mas, nessa época, tudo acontecia com muita velocidade. Um baixinho, Getúlio Varga, fazia a sua revolução (uma marcha do carnaval gaúcho de 1930, profética: “Seu Getúlio/ ou vai ou racha/ ou, se não for, terá barulho”). Nascia o cinema falado e já se punha a cantar (samba). Lampião e Maria Bonita transavam em pleno cangaço. O baixinho aquele, ansioso por novidades, voltava e fundava um Estado Novo. A classe média manifestava-se cada vez mais, ela que já tinha feito a Semana da Arte Moderna. E gente demais, demais mesmo, saía do campo pra cidade, onde já faltava espaço. Muitos acabaram indo pros botecos tomar trago e bater papo.

Lá por volta de 1950 pintou a zebra. A Segunda Guerra tinha terminado, mas começava outra, a do samba-canção contra seus adversários. Já abundavam, em 30 e 40, as orquestras de jazz-band (do cinema americano), mas o primeiro concorrente à altura foi mesmo o bolero que, malandro, chegou cantando as mesmas tragédias. Fazia parte de um movimento internacional, segundo o José Ramos Tinhorão, para tomar conta do mercado consumidor. Só dava ele no rádio. O samba-canção, esquecido e humilhado, fazia de tudo pra aparecer. Chegou mesmo, em seu desespero, a querer imitar o rival. Extrema humilhação. Passou a ser chamado de sambolero.

Mas a década de 50 ainda prometia muito mais. Uma revolução, iniciada nos Estados Unidos, se propagara pelo mundo e chegava no Brasil: o escandaloso rock and roll. Por onde passava, o filme Rock around the clock, com Bill Haley e seus Cometas, ia deixando estas impressões:

– no rock, a melodia não é levada em consideração;

  – “o que conta é o ritmo, movimento monótono, rápido, de um tempo”;

  – “os músicos soltam gritos inarticulados e, na proporção que lhes permitem seus instrumentos, contorcem-se todos para tocar. De vez em quando deitam-se no chão, depois pulam para cima dos móveis”;

  – os críticos americanos atribuem ao rock um efeito afrodisíaco;

  – surpresa da imprensa inglesa diante da moçada lotando os cinemas – ela que há pouco tempo considerava o rock, além de “histeria coletiva”, uma “história bem americana”...

Barra pesada. Como poderia o nosso calmo samba-canção com rival tão agitado? Mas ainda veio mais. Além dos roqueiros tupiniquins que surgiram imediatamente, aqui dentro mesmo se tramava contra o samba tradicional. João Gilberto no violão, Tom Jobim no piano e Vinícius de Moraes ditando as letras, claro, só podia ser uma bossa nova, “uma descontinuidade entre o acerto rítmico da melodia e do acompanhamento”, segundo o Tinhorão. Como se não bastasse tudo isso (esqueci a tevê, que já há dez anos ia desbancando o rádio), estouraram os Beatles (a cara dos ingleses...) e a nossa turma do iê-iê-iê, apareceram os festivais e uma nova música brasileira: Chico Buarque, Caetano Veloso, Geraldo Vandré.

Mas, espanto: aí fechou-se o ciclo. A moderna música popular brasileira (MMPB) se apaixonou pela antiga. Sentaram-se todos, nova e velha guarda, na mesma mesa, sob a mesma sigla (MPB), para levar um papo. Então pintou o resto: o violão, a guitarra, o pandeiro, o sintetizador – e fez-se de novo, e muito melhor, a roda de samba.

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