Heloísa Menezes
A origem da minha família se perde no tempo, eu mesma estou
prestes a completar 200 anos. Sou uma Chiconia
Mydas, tartaruga nascida no litoral da Bahia, pré Projeto Tamar. Já vivi demais.
Vi e ouvi demais. O suficiente para perder todas as certezas. Ouço mais do que
falo. Aprendo – só a velhice nos permite essa humildade.
Tantas loas à minha carapaça deve-se ao fato deq eu começava
a escrever meu primeiro artigo para o CANDIRU – ah, o CANDIRU não para de
surpreender, não é? – disposta a descer o cacecete no Horário Eleitoral
Gratuito, afirmar que ele é antidemocrático, elitista – quem tem TV a cabo muda
o canal, quem não pode pagar este luxo que aguente a xaropada –, um lixo autoritário
dos tempos da ditadura, que o tempo cedido aos candidatos não os permite
apresentar nenhuma ideia que preste, que o minuto na televisão custa uma fábula
para ser gasto tão inutilmente, etc, etc e tal, quando subitamente
materializou-se em meu escritório um brasileiro defensor da presença gratuita
dos candidatos na televisão.
Ele ouviu meus argumentos e reclamou. Escutei sua
contra-argumentação, sem concordar. Mas não deixei de anotar nada. Pretendia
fuçar novas informações. Descobrir se, afinal, o brasileiro não estava certo e,
infelizmente, não fora eu que me transformara em uma tartaruga ranzinza.
Bem, nada escreverei contra o Horário Eleitoral Gratuito. Se
há brasileiros que o apreciam, meu dever é respeitá-los. Mas, nas xeretadas
aqui e ali para garimpar argumentos pró e contra esta interessante
característica das eleições brasileiras, descobri que os cientistas políticos
afirmam que o tempo televisivo muda quatro pontos para mais ou para menos a
vida dos pretendentes ao exercício do poder. Ou seja, quem chega ao horário
gratuito ferrado, ferrado permanecerá.
Também descobri que se as emissoras são concessões do
governo, as mais importantes delas adquiriram seu caráter de empresa privada
antes da invenção do Horário eleitoral. E não existe, no acordo entre o governo
que fez concessão e estas emissoras, nenhum artigo que as obrigue a assumir
prejuízos em horário nobre para divulgar as ideias de Zé Colmeias da vida.
Nos últimos dias, constatei que todos os meus coleguinhas –
nem todos tartarugas, diga-se de passagem – assistiram aos Horários Eleitorais
e encheram páginas e páginas de jornais. Afinal, a eleição é o assunto do dia.
Tudo foi devidamente registrado e publicado. Mas até a notícia supostamente a
favor do bendito horário eleitoral – o primeiro programa noturno alcançara 52%
de audiência na Grande Manaus, quase uma estreia de novela das oito – escondia
um subtexto meio maligno: o desfile abobral-político acontecera entre os
programas de maior audiência...
O brasileiro que pensa diferente de mim é pessoa de fino
trato, muitas luzes, informado, sagaz, inteligente. Mas deve ter torcido o
narizinho ao notar que, em um artigo publicado no site da Veja, o jornalista
Augusto Nunes reclamara da incapacidade linguística da presidente Dilma
Rousseff, detectada na entrevista feita com William Bonner para o Jornal
Nacional. Neste caso, não precisei nadar oceanos afora, pesquisando e me
informando. Bastou assistir à referida entrevista.
Sim, agora estou diante de um fato. Podemos aceitar, ou não,
que a presidente da República seja incapaz de falar corretamente o próprio
idioma. E ponto final. Mas anciãos, como é de conhecimento público, são muito
chatos. Eu, velha tartaruga de muitos mares e vidas, decididamente recuso-me a
ver a maior autoridade do País tropeçando na concordância do sujeito com o
predicado. Quando o nóis vai, nóis fica
chegou ao Palácio do Planalto, há amis de uma década, arrumei as trouxas e me
mudei para as Ilhas Seychelles. Nem sei o que me trouxe de volta. Deve ter sido
alguma corrente marítima.
Estou cansada. Década após década assisto ao Brasil
superar-se em acontecimentos ilógicos. Acho que me aposentarei. Pois então, no
meio do tititi eleitoral, um mundo de opiniões divergentes, ainda me perguntam
se a Deborah Secco – neoloura satânica, cílioclonada, siliconada, mais magra, a
mil por hora no estilo sexy – poderia ser a reencarnação da Little Annie
Funnie, louraça sensual que, nos anos 60, Hugh Heffner, o dono da Playboy,
criou para incrementar as vendas de sua revista?
Sinceramente, é demais para um pobre quelônio. Posso até
tentar entender o Horário Eleitoral Gratuito, mas a transformação daquela
menina, meus seculares neurônios não conseguem decodificar. Procurei um biólogo
do Projeto Tamar: espécie humana masculina, jovem e saudável. Pedi-lhe para
solucionar-me o problema. O biológo sorriu, guloso. Garantiu-me que Deborah
Secco é um pitéu brasileiríssimo e, em boa hora, despiu a personalidade de
menina má e vestiu a de mulher boazuda.
Seguindo este novo caminho, jurou meu consultor particular
em senhoras e senhoritas com perfeitas condições de manuseio e uso, Deborah
Secco ficará mais conhecida, mais rica e esquecerá rapidinho os ex-maridos.
Outras especulações – entre elas, as espírito-esotéricas – são apenas devaneios
de marmanjos da terceira idade, saudoso dos tempos em que uma personagem de
revista, desenhada cheia de curvas, levava-os ao paraíso.
Tartarugas velhas do sexo feminino são extraordinariamente
más. Concordei com o biólogo e gargalhei com desprezo. Não sem antes enviar um
beijo ao brasileiro que me fez pensar. Obrigado, você me ajudou a pensar este
primeiro artigo. Espero que também tenha sido bom pra você...
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