Rafael Galvão
João Ubaldo Ribeiro era proibido de entrar lá em casa.
Não seus livros, que esses sempre tiveram trânsito livre;
até livros ruins podiam entrar lá, e entravam de vez em quando, um livro do
João Ubaldo seria recebido com festas, até. Proibido de entrar era ele, mesmo.
João Ubaldo era uma dessas coincidências curiosas que nos
cercam de vez em quando: alguém que tinha algum tipo de ligação com dois ramos
completamente independentes da família.
Não é todo mundo que sabe, mas ele morou um bom tempo em
Aracaju. Morou ali, na rua Cedro, entre a Campo do Brito e a praça Tobias
Barreto.
Minha avó era madrinha de seu irmão, Manoel. Os Galvão
gostavam muito deles, e a recíproca era verdadeira.
Seu Manoel Ribeiro, seu pai, era ligado ao PSD. Acabou tendo
que sair às pressas de Sergipe aso ser ameaçado de morte por membros da UDN — e
minha avó até o fim da vida nominava os “canalhas” que fizeram isso. Seu Manoel
morreu de forma boba anos depois, escorregando e batendo a cabeça num meio-fio;
mas nunca mais voltaria a Sergipe. Acho que boa parte da raiva de minha avó em relação a tudo o que
cheirasse a UDN vinha daí.
Anos mais tarde João Ubaldo conheceu meu pai no Jornal da
Bahia. Depois, quando soube que ele era casado com a neta de dona Sinhá, que
ele tinha conhecido na adolescência, passou a lhe dizer que tinha trocado as
fraldas de minha mãe.
Dizia isso numa mesa de bar, porque nelas ele era rei. Era
dessas pessoas que, nessas mesas — e há outro lugar no mundo? —, monopolizava
as atenções, é o que me dizem. Quando começava a falar, com seu vozeirão e uma
inteligência rara, todos paravam para escutar. (Enquanto escrevo isso lembro de
outro sujeito que também era assim e que se foi recentemente: seu nome era
Marcelo Déda.)
Mas João Ubaldo não era meu escritor preferido. É óbvio que
é difícil não reconhecer a genialidade de um livro como “Viva o Povo
Brasileiro”, e o “Diário do Farol” ajuda a fazer dele talvez o mais legítimo
sucessor — sem ser imitador — de Jorge Amado, mas minhas preferências andaram
por outros becos. Olhando para trás, vejo que li tão pouca coisa dele. Acho que
o que mais gosto de João Ubaldo é uma carta aberta que ele destinou a Fernando
Henrique Cardoso, então recém-reeleito à presidência da República. Merece o meu
respeito e veneração qualquer pessoa que escreva a um presidente em seu momento
mais glorioso e lhe diga isso:
Ainda que
obscuramente, sou do mesmo ramo profissional que o senhor, pois ensinei ciência
política em universidades da Bahia e sei que o senhor é um sociólogo medíocre,
cujo livro O Modelo Político Brasileiro me pareceu um amontoado de obviedades
que não fizeram, nem fazem, falta ao nosso pensamento sociológico.
Só por isso, por essa desfaçatez, por esse esnobismo, João
Ubaldo Ribeiro é também meu herói. Mas não foi por isso que ele inspirou um dos
melhores personagens de Henfil — Ubaldo, o Neurótico. Na verdade, foi pela
mesma razão pela qual o meu pai o proibiu de entrar lá em casa:
“Você foi passar um fim de semana na casa de Henfil e quando
foi embora levou junto a Berê. Pois na minha casa você não coloca os pés.”
E só por isso, tanto quanto seus livros, tanto quando as
crônicas, João Ubaldo Ribeiro vai fazer muita falta.
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