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terça-feira, agosto 05, 2014

Relembrando João Ubaldo Ribeiro


Rafael Galvão

João Ubaldo Ribeiro era proibido de entrar lá em casa.

Não seus livros, que esses sempre tiveram trânsito livre; até livros ruins podiam entrar lá, e entravam de vez em quando, um livro do João Ubaldo seria recebido com festas, até. Proibido de entrar era ele, mesmo.

João Ubaldo era uma dessas coincidências curiosas que nos cercam de vez em quando: alguém que tinha algum tipo de ligação com dois ramos completamente independentes da família.

Não é todo mundo que sabe, mas ele morou um bom tempo em Aracaju. Morou ali, na rua Cedro, entre a Campo do Brito e a praça Tobias Barreto.

Minha avó era madrinha de seu irmão, Manoel. Os Galvão gostavam muito deles, e a recíproca era verdadeira.

Seu Manoel Ribeiro, seu pai, era ligado ao PSD. Acabou tendo que sair às pressas de Sergipe aso ser ameaçado de morte por membros da UDN — e minha avó até o fim da vida nominava os “canalhas” que fizeram isso. Seu Manoel morreu de forma boba anos depois, escorregando e batendo a cabeça num meio-fio; mas nunca mais voltaria a Sergipe. Acho que boa parte da  raiva de minha avó em relação a tudo o que cheirasse a UDN vinha daí.

Anos mais tarde João Ubaldo conheceu meu pai no Jornal da Bahia. Depois, quando soube que ele era casado com a neta de dona Sinhá, que ele tinha conhecido na adolescência, passou a lhe dizer que tinha trocado as fraldas de minha mãe.

Dizia isso numa mesa de bar, porque nelas ele era rei. Era dessas pessoas que, nessas mesas — e há outro lugar no mundo? —, monopolizava as atenções, é o que me dizem. Quando começava a falar, com seu vozeirão e uma inteligência rara, todos paravam para escutar. (Enquanto escrevo isso lembro de outro sujeito que também era assim e que se foi recentemente: seu nome era Marcelo Déda.)

Mas João Ubaldo não era meu escritor preferido. É óbvio que é difícil não reconhecer a genialidade de um livro como “Viva o Povo Brasileiro”, e o “Diário do Farol” ajuda a fazer dele talvez o mais legítimo sucessor — sem ser imitador — de Jorge Amado, mas minhas preferências andaram por outros becos. Olhando para trás, vejo que li tão pouca coisa dele. Acho que o que mais gosto de João Ubaldo é uma carta aberta que ele destinou a Fernando Henrique Cardoso, então recém-reeleito à presidência da República. Merece o meu respeito e veneração qualquer pessoa que escreva a um presidente em seu momento mais glorioso e lhe diga isso:

Ainda que obscuramente, sou do mesmo ramo profissional que o senhor, pois ensinei ciência política em universidades da Bahia e sei que o senhor é um sociólogo medíocre, cujo livro O Modelo Político Brasileiro me pareceu um amontoado de obviedades que não fizeram, nem fazem, falta ao nosso pensamento sociológico.

Só por isso, por essa desfaçatez, por esse esnobismo, João Ubaldo Ribeiro é também meu herói. Mas não foi por isso que ele inspirou um dos melhores personagens de Henfil — Ubaldo, o Neurótico. Na verdade, foi pela mesma razão pela qual o meu pai o proibiu de entrar lá em casa:

“Você foi passar um fim de semana na casa de Henfil e quando foi embora levou junto a Berê. Pois na minha casa você não coloca os pés.”

E só por isso, tanto quanto seus livros, tanto quando as crônicas, João Ubaldo Ribeiro vai fazer muita falta.

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