Leonardo Rodrigues
Em seu mundo onírico, psicodélico e espacial, o artista se
contorce, desafina, maltrata impiedosamente o piano, perdendo-se em andamentos
que escapam de qualquer entendimento formal. E é invariavelmente ovacionado.
Sempre. É Arnaldo Baptista. Se o insano salto da janela de um hospital psiquiátrico em 1981, que lhe fez perder
massa encefálica e trouxe graves sequelas, não é tabu, a loucura é muito menos.
No show independente “Sarau o Benedito?”, que no último
domingo (3) ocupou o palco do Cine Theatro Brasil de Belo Horizonte, Arnaldo se
apresenta acompanhado apenas de um piano de cauda e das pétalas que circundam o
suntuoso instrumento. Ao fundo, um telão projeta as formas estranhas e de cores
berrantes de suas criações artísticas, que ele mesmo define como “exorealistas”
– uma mistura de surrealismo com o prefixo “exo”, que é “o que vem de fora”. Em
outras palavras, ETs.
Sob a benção de “Dionísio”, o Deus grego dos excessos e da
loucura, o recital/sarau não obedece a critérios lógicos. Arnaldo não tem
setlist. Segue apenas as coordenadas de seu fluxo de (in)consciência, que
conjuga, em forma de pequenas vinhetas, obras de Os Mutantes (como “Balada do
Louco”, “Ando Meio Desligado” e “Desculpe, Babe”), a carreira solo (“Cê Tá
Pensando Que Eu Sou Lóki?”, “Jesus, Came Back To Earth”) e versões diversas
(“Rocket Man”, de Elton John, “Blowin’ In The Wind”, de Bob Dylan, e “Hit The
Road Jack”, de Ray Charles).
Essa mesma insanidade, que ganhou asas de Ícaro nos tempos
de LSD, é uma das vias de seu novo trabalho, o ecológico “Esphera”. O álbum
deve chegar às lojas após sua segunda exposição de arte na galeria Emma Thomas,
em São Paulo, prevista para 20 de novembro. Além do primeiro disco em dez anos,
é também sua nova epifania, ele diz. Reverenciado pelo mundo, após mais de
quatro décadas, Arnaldo Baptista, enfim, encontrou seu rock and roll.
Quando não está em seu sítio em Juiz de Fora, Arnaldo está
em seu apartamento, em um edifício de cinco andares na zona centro-sul de Belo
Horizonte. E é neste espaço, arejado e de salas e janelas amplas, que o músico
de 66 anos – completados em julho – consegue encontrar a paz para pintar e
escrever. E é também onde se prepara para iniciar as comemorações de 40 anos de
seu primeiro álbum solo, “Lóki?”, que moldou a identidade artística que mantém
até hoje. Bem distante do rebuscado rock progressivo que os Mutantes praticavam
na época, sob a batuta de seu irmão Sérgio Dias. Um som mais básico, mais de
piano, “mais lóki, bicho”.
Arnaldo Baptista
durante o show “Sarau o Benedito?” no Cine Theatro Brasil, em Belo Horizonte
Leonardo Rodrigues – Como
está sua rotina aos 66 anos? Você ainda toma energético e dorme pouco?
Arnaldo Baptista – Eu nunca fui uma pessoa amiga do “dormir
demais”. Sempre tive insônia. Eu estou legal agora. Não dá mais para correr
mais 200 km. Não pode, né? A velhice vem. Então, não tem jeito. Interessante é
que agora estou com 66, e eu tinha 33 quando eu quase morri. Já vivi a segunda
metade [risos].
Você praticou
meditação durante um tempo. Continua?
De certa forma, fiz, sim. Tipo yoga. Mas hoje eu faço pouco,
só para relaxamento mesmo. Eu acho um pouco monótono, no sentido de ter um
objetivo. Prefiro fazer algo mais físico.
E seu trabalho com as
artes plásticas? Como será sua próxima exposição?
Eu já compus mais de cem músicas, estava vendo outro dia
pelo que recebo. Mas, na pintura, não chego perto disso. Na música sou mais
calejado. Nas artes plásticas não tenho tanta experiência. Então vamos ver até
onde eu alcanço, porque não conheço tão bem artes plásticas quanto conheço
música. Conheço Degas, Salvador Dalí, mas não é uma coisa tão profunda quando a
música. Então eu vou tentar experimentar minha fase de estilos.
Quais são suas
influências nas artes?
Eu não tenho inspirações. Às vezes vejo uma tela em branco e
eu não tenho ideia do que vai sair. Mas, às vezes, durante o dia, eu vejo uma
menina linda e tento retratá-la. Eu vejo um automóvel com motor de Corvette, um
jipe, e a motivação vai nesse sentido, também na criação. Tem uma semana que
pinto três ou quatro quadros. E, às vezes, passo um mês sem pintar. É difícil
me programar cronologicamente.
Seus pais tinham
formação de música clássica. O quanto isso te influenciou como músico?
Isso me ajudou muito. Quando eu era criança, tinha um piano
lá em casa. Eu não ficava trocando bangue-bangue na rua, brincando de
pega-pega. Eu ficava estudando o teclado em casa. E eu fazia um estudo meio de
ouvido. Mamãe já tocou em Viena, em grande orquestra, a primeira mulher que
compôs piano em orquestra no mundo. Então ela tinha uma técnica maravilhosa,
mas ela não conseguia tocar de improviso, tinha que ser escrito. Eu sou
diferente dela nesse sentido, mas foi muito importante para a minha criação.
Papai já escreveu vários livros, era poeta, cantor. Mamãe também cantava. Então
deram uma inspiração para a gente.
Você acha que Os
Mutantes inventaram o rock brasileiro?
Acho que pode ser aceito assim. Muita gente falava que
colocamos guitarra na música brasileira, mas a guitarra elétrica do Les Paul é
mais antiga, tem a minha idade. Os Mutantes colocaram o contrabaixo na música,
que os Beatles e os Rolling Stones já tinham colocado. O baixo que existia
antes era aquele rabecão. Mas o baixo elétrico, que dá aquele som assustador,
que deixa todo mundo meio imóvel, pasmo, isso foi a gente que botou. Antes era
tudo meio italiano, meio Pepino de Capri. Os Mutantes botaram um lado mais
artístico, clássico. E era necessário fazer isso, colocar uma coisa mais
brasileira.
Em 2006 você voltou a
tocar com Os Mutantes. Hoje, se houvesse o convite, você retornaria?
Não. Mais pelo sentido tecnológico, o que pode ser difícil
para o pessoal entender. Eu não gosto mais do meu irmão Sérgio. Eu prefiro o
amplificador valvulado ao digital. Uma vez, no aeroporto, ele falou: “Amplificador
valvulado é frágil e dificílimo de ligar”. Pensei: “Como ele é burro”. Na
época, eu estava naquela de que o silêncio conduz ao absoluto. Então eu não
falei nada, mas eu nunca mais vou tocar com ele, porque ele não tem um gosto
que harmonize com o meu. Nas guitarras também. Ele escolheu as guitarras
piores, a Fender, guitarras que eu não gosto. Prefiro Gibson. Não concordo com
ele. Nunca mais toco com ele.
E a Rita Lee?
A Rita é uma coisa que já apaguei da minha vida.
Você se considera um
purista do rock?
Não. Nessa turnê dos Mutantes tocamos no teatro Fillmore, em
São Francisco. Bob Dylan já tocou lá. E eu cheguei lá e o amplificador também
era digital. Então eu não posso dizer que eu sou contra o mundo inteiro, né?
Tenho a ousadia de achar que a válvula no amplificador é o absoluto obsoleto,
que ninguém usa mais. Como é difícil explicar a diferença que existe entre o
som da válvula e o digital, estou pensando em criar o “Clube dos Possuidores
dos Amplificadores Valvulados” [risos]. Ia ser mais fácil para aceitarem os
valvulados.
Qual é a principal
diferença do valvulado?
É muito mais fiel porque apresenta a definição dos graves.
No digital fica confuso, não tem a precisão do tom que se está fazendo. E, além
disso, a distorção do valvulado fica uma distorção bonita. Os transistors que
distorcem o digital são muito quebrados, parece vidro. Já na válvula é gostoso.
Não fica mudando na mão do cara que comanda o mixer e controla o som do show.
Você é contra CD e
MP3 também?
Não sou contra o digital. Eu uso gravador digital. Sou
contra só o amplificador digital. O CD foi, para mim, uma maravilha. Todo mundo
conheceu nosso trabalho, ficou como parte da cultura. A gente assimilou isso
num sentido mundial.
O que você escuta em
casa?
Escuto um pouco de Elton John, que eu gosto muito. Um pouco
de Jethro Tull, Pink Floyd, Yes. É o que ouço. De música clássica gosto muito
de Liszt, da Rapsódia húngara, que é muito bonita. Eu ouço pouca coisa
clássica.
Falando de Yes e
Jethro Tull, muitos criticam a fase final dos Mutantes, quando a banda
enveredou para o rock progressivo. Você se arrepende dessa mudança de estilo?
Ótima pergunta. Estava falando de equipamentos, coisas
tecnológicas, válvula. Eu amo o Yes, mas não tanto. E o nosso baixista, o
Liminha, comprou um contrabaixo igual ao do Yes, um Rickenbacker. Eu não gosto,
é muito agudo. Prefiro o Gibson do West, Bruce and Laing, que eu ouço bastante.
E o Sérgio comprava guitarra Fender, que também não gosto. Então, nesse
sentido, eu me arrependo de a gente ter entrado em uma coisa tão difícil, que
afastou a Rita. Se fosse um lado difícil mas que eu concordasse, seria bom. Mas
ficou tudo mais ou menos. Por isso que eu enveredei para o “Lóki?”.
Os Mutantes teriam
resistido se vocês não tivessem mudado o estilo?
É muito difícil. Com o Sérgio presente, eu prefiro evitar de
falar. Pode-se dizer que eu sou um “one man band”, toco todos os instrumentos,
contrabaixo, bateria, guitarra, teclado e voz. O Sérgio, meu irmão, não foi
humilde o suficiente para deixar eu tocar bateria nessa tour progressiva dos
Mutantes. Nem guitarra, nem contrabaixo. Ele botou para mim um dos três
teclados lá no fundo. Então foi uma decepção.
Capa do disco “Lóki?”
(1974), de Arnaldo Baptista
O show em Belo Horizonte marca o início das celebrações dos
40 anos do “Lóki?”. Por que escolheu a capital mineira?
Eu tenho a impressão de que o Brasil é cheio de altos e
baixos quanto à cultura. Por exemplo, o carioca foi colonizado pelos
portugueses. O Nordeste é holandês. São Paulo tem bastante italiano. E agora,
em BH, eu tenho a impressão de que é um lado central do Brasil, onde todas as
culturas se condensam em uma coisa só. Devia se chamar “Brasília”.
Tem esso lado. Eu gosto.
E como será seu novo álbum, “Esphera”?
Estou trabalhando nele. A vida artística é cheia de altos e
baixos. Num dia o seu gravador não funciona... [risos]. Eu vou adiante. A maior
parte das músicas já está gravada. Agora é questão de esperar o lançamento. Eu
estou com a esperança de que seja aceitável. “Esphera” é uma coisa
que tenho pensado em lançar há muito tempo.
Existe um conceito por trás dele?
Sim. Eu entro no sentido de que eu tento melhorar a vida de
todo mundo que está ouvindo, e a minha também. No “Lóki?”, o
primeiro, eu levei para o lado de ser mais psicodélico. Atualmente eu estou
numas de energia. Eu acho que a humanidade tem um sentido de piromaníaco
[risos]. Qualquer coisa que passa energia, acaba queimando, e isso acaba com a
atmosfera. Essa história de eletricidade solar, a eólica, com o vento, isso
tudo ainda é meio deixado de lado. Então eu estou botando isso adiante. O carro
elétrico, com o uso de energia solar, anda de graça. O carro tem que gastar só
pneu. Isso, no futuro, vai acontecer.
Musicalmente, o disco cai mais para qual lado? O piano
básico de “Lóki?” (1974) ou a tristeza acústica de “Singin'
Alone” (1982)?
Ótima pergunta. Nessa coisa de estilo, eu faço questão de
não endereçar para nenhum ponto. O “Lóki” não foi para o samba, não
foi para o rock. Eu nunca faço só um estilo de música, só caipira, folclórica,
rock and roll, mais puro ou psicodélico, como o Pink Floyd. Nessa coisa de
estilo eu vario de música para música. Tem o lado caipira, aí eu boto adiante
violão, viola, gaita. Se a música tem um lado de jazz, eu passo sintetizador. A
diferença do “Lóki?” para o “Esphera” vem muito da parte de
equipamentos, que me interesso muito. Para mim, a diferença é enorme, porque
agora tenho tudo que sonhava ter na vida. Contrabaixo Gibson, guitarra Gibson,
bateria Ludwig, órgão Hammond. Estou mais completo para alcançar o que tenho a
fazer com a música. Será uma coisa interessante.
Você já disse em certos momentos que seu trabalho é “exorealista”. O que isso quer dizer exatamente?
Existem muitos estilos. Surrealismo, impressionismo, essas
coisas. Eu tive a ousadia de falar que o meu estilo não é surrealista, é “exorealista”. No sentido em que “exo” tem a ver com
esoterismo. “Exo”, em latim, quer dizer “para fora”. Então,
de certa forma, eu adoro o que vem de fora. Por exemplo, nas artes plásticas, “exorealismo” vai ser um lado onde eu tento pintar o que seriam os
ETs. Imagine, e desculpe o termo, a vagina de uma ET [risos]. Do lado
surrealista eu vou tentando botar algo mais aceitável, de acordo com a
respiração, se tem asa, se tem seis dedos, e essas coisas todas.
Você já afirmou que gravar o “Lóki?” foi um
processo dificultoso. De que forma?
Tenho a impressão de que foi para me separar da imagem dos
Mutantes, porque o “Lóki?” foi gravado com o baterista e o baixista
dos Mutantes, o Liminha. Ele falou: “Tem que gravar de novo, está muito
Sérgio Mendes”. Eu falei: “Não tem nada que fazer de novo. Fica o que
saiu agora, com espontaneidade. A gente improvisou”. E foi o que saiu. Eu
fui para um lado de aceitar o que estava gravado.
“Lóki?” e “Singin' Alone” são
considerados seus dois grandes trabalhos solo. Qual deles você prefere?
Prefiro o “Singin' Alone”. No “Lóki?” eu
não fiz todos os instrumentos, só na última música, com o violão. No “Singin' Alone” eu já toco tudo, desde bateria, contrabaixo,
guitarra, teclado, voz. Então, para mim, foi como ter uma experiência, um
teste, para ver se eu era capaz daquilo ou não. Foi mais importante para mim.
Sua música mais conhecida ainda é “Balada do
Louco”. O quanto a loucura ainda faz parte da sua vida?
Acho que o louco pode ser colocado da seguinte forma: o
cérebro humano é igual a uma máquina, talvez seja o melhor computador que
exista. No motor de carro, quando você coloca STP [marca de lubrificante], ele
funciona mais bonito, flui melhor, com maior energia e mais potência. No
cérebro humano também acontece isso, no sentido de liquidez, fluidez,
espontaneidade. É a verdade, profundamente.
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