José Ribamar Bessa Freire
O que é fato e o que é invenção? Há três anos, o escritor
Milton Hatoum deu conferência magistral sobre a fronteira porosa entre ficção e
realidade na abertura do V Encontro de Letras e Artes em Campos dos Goytacazes
(RJ), cujo tema era territórios da memória. Tive a sorte de ouvi-lo, porque os
organizadores também me convidaram para falar sobre a história da língua e sua
relação com a identidade. Fomos juntos. No caminho, na estrada, relembramos
fatos vividos desde 1981, quando nós dois, amazonenses, nos conhecemos –
incrível! – em Paris, num jantar na casa do escritor peruano Julio Ramón
Ribeyro.
Mas a história inacreditável que Milton Hatoum narrou para
um auditório lotado que se deslumbrou, essa eu não conhecia. Foi assim. Quando
ele era professor na Universidade Federal do Amazonas (UFAM), em 1984, foi
procurado pelo conhecido jornalista inglês, Bob Misleading, da BBC, que
preparava reportagem sobre o cientista britânico Joseph Oversea, assassinado
por um índio, em meados do século XIX, nos arredores de Manaus.
Milton conhecia muito bem relatos de vários naturalistas que
viajaram pela Amazônia, mas nunca ouvira falar naquele nome:
–- Joseph Ovearsea? I don’t know.
Bob explicou que o cientista era desconhecido porque era gay
e viveu em plena era vitoriana. Por isso, foi censurado pelo puritanismo
dominante e condenado ao anonimato. A rainha Vitória, nos 64 anos de seu
reinado, manteve-o no ostracismo, apagou-o dos arquivos e até proibiu a
publicação do seu livro, onde havia um desenho a bico de pena que retratava uma
cachoeira em Manaus.
–- Quero localizar esta cachoeira, que é o túmulo do
Oversea, morto, em 1850, com uma flechada que lhe perfurou o coração, atirada
por um índio Passé - disse Bob, exibindo para Milton a gravura dentro do livro.
Acrescentou que a reportagem que preparava para a BBC era a forma de tornar
conhecido o injustiçado cientista.
A cachoeira
Não foi tarefa fácil. Hatoum conhece bem Manaus, mas a
cidade mudou muito depois de século e meio de história. De lá pra cá, igarapés
foram aterrados, rios morreram e viraram esgoto, ruas ocuparam o lugar da
floresta, carros substituíram canoas. O escritor convidou o jornalista a
percorrer os bairros em busca de cachoeiras. Passaram pela Cachoeirinha na
terceira ponte, visitaram o Tarumã, o Mindu, as Pedreiras, observando tudo, até
que na subida do bairro de São Jorge, se detiveram na Cachoeira Grande, que
serviu ao primeiro sistema de captação de água de Manaus.
– Foi aqui – gritou Hatoum, animado.
O jornalista Bob Misleading confirmou, depois de comparar a
paisagem que via com a gravura antiga. Fez, então, ali mesmo, várias tomadas
para a BBC: shots, takes and the devil at four. À noite, jantaram uma costela
de tambaqui no Canto da Peixada. O gringo, que era chegado numa cachaça,
emborcou dez caipirinhas. Chegou no hotel catando cavaco. No dia seguinte,
voltou pra Londres, Milton foi dar aulas na Universidade e os dois não se
falaram mais.
Cinco anos depois, Milton Hatoum decidiu fazer uma biografia
do naturalista assassinado. Entrou em contato com uma amiga que morava em
Washington, pedindo que buscasse dados sobre Joseph Ovearsea na Biblioteca do
Congresso, que tem TUDO o que foi publicado no planeta terra. No entanto, no
acervo com 160 milhões de títulos, entre os quais 40 milhões de livros
catalogados e 70 milhões de manuscritos em mais de 500 idiomas, nada havia
sobre o mencionado cientista. Nem uma vírgula. A férrea censura vitoriana tinha
sido eficaz.
Intrigado, Hatoum viajou a Londres e procurou o jornalista
no endereço da BBC, em Portland Place, mas Bob havia sido demitido. Uma
secretária chamada Scarlett forneceu o telefone da Bloomberg TV, onde ele agora
fazia uns bicos. Marcaram um encontro num pub em Portobello Road, no bairro
Notting Hill. Lá, numa taverna hash house, que é o nosso popular dirty foot,
Milton falou de seu projeto literário e perguntou onde podia consultar
documentos relativos a Oversea. A resposta foi uma gargalhada de Bob, que
continuava cachaceiro e já estava na décima dose de dry gim:
– Milton, eu não te falei? Joseph Oversea foi uma invenção
minha, eu criei o personagem e a história.
– E a imagem da cachoeira?
– Ah, essa foi uma gravura que retirei do livro A narrative
of travels of the Amazon and Rio Negro do botânico Alfred Russel Wallace.
Caboco Suburucu
O auditório, hipnotizado, escutava Milton Hatoum, que
discorreu sobre a ambiguidade entre o real e o ficcional sempre presente na
literatura. Comentou que um texto ficcional não é um relato factual do que
aconteceu, mas aquilo que poderia ter acontecido, que explode na consciência e
na memória do escritor e toma forma de discurso. Concluiu sua conferência com
frase de impacto:
– Oversea não existia, mas passou a existir depois que Bob o
inventou e existe agora, para vocês, neste momento em que acabo de contar sua
história.
O público aplaudiu efusivamente o conferencista, grato pelo
sopro que deu vida a Oversea. Fiquei tão maravilhado, achei tão engenhosa a
forma de expor a questão que sai repetindo a história em minhas aulas, nas
rodas de conversa e nos mares da vida. Um mês depois, viajo a Brasília e
encontro lá Thiago de Mello, para quem faço um resumo da conferência, ainda
embriagado de entusiasmo. O poeta me ouve com um sorriso moleque e quando
termino diz:
– O Milton já tinha me contado. Mas ele não te falou que
esse jornalista da BBC também não existe? Nunca existiu, nem o cientista, nem o
jornalista. Ambos são personagens do Milton Hatoum, essa história nunca
aconteceu, é tudo invenção do escritor.
Fiquei mais maravilhado ainda com esse final e o incorporei
à narrativa que costumo fazer em sala de aula. Numa das vezes, uma aluna me
perguntou:
– Professor, e o Thiago de Mello? Ele existe mesmo?
Com o espírito do Milton Hatoum, respondi que se o Thiago de
carne e osso existe, eu não sei e também não importa. Sei que ele é um
personagem, uma invenção dos cabocos amazonenses e dos leitores espalhados pelo
mundo, incluindo a própria aluna perguntadora, que conhecia “Os Estatutos do
Homem” traduzido para mais de 30 idiomas. Thiago de Mello existe porque é lido
com prazer e, agora, aos 88 anos, surge como candidato a uma vaga na Academia
Brasileira de Letras que nunca abrigou um amazonense e, portanto, não será
inteiramente brasileira, enquanto uma de suas cadeiras não for ocupada por um caboco
suburucu popa de lancha, bandeira azul.
P.S.: Como o tema se prestava para tal, preenchi com a
imaginação as lacunas da memória sobre a conferência, que foi efetivamente dada
em outubro de 2011, em Campos. Invoco o testemunho do próprio Milton e da
professora de literatura brasileira da Universidade Federal Fluminense,
Stefania Chiarelli, presente no carro na viagem para Campos e que também deu
uma conferência sobre o seu livro Vidas
em trânsito: as ficções de Samuel Rawet e Milton Hatoum publicado em 2007.
O referido é verdade e dou fé.
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