Em março de 1954, um grupo de congregados marianos da Igreja
de Santa Rita, na Cachoeirinha, em comum acordo com diversas moças “filhas de
Maria”, resolveu organizar uma quadrilha para se exibir durante a quermesse da
própria igreja.
A iniciativa de Gentil Queiroz Bessa recebeu imediatamente o
apoio do Frei Vareliano, o pároco da igreja.
Fugindo do “rame-rame” das quadrilhas caipiras tradicionais,
Gentil Bessa resolveu criar uma quadrilha inspirada nos cangaceiros, que
denominou de dança nordestina. Nascia a primeira quadrilha de “cabras da peste”
da cidade, a famosa Primo do Cangaceiro.
No papel de marcador, Gentil Bessa era o próprio Lampião,
enquanto Zacarias Teixeira, no papel de Capitão Galdino, era o “primo do
cangaceiro”.
A história tinha o seguinte enredo: o Capitão Galdino e sua
namorada, acompanhada de Lampião e seus cangaceiros, invadia um povoado e fazia
uma festança para comemorar o casamento “na marra” de um casal de matutos.
A quadrilha passou a fazer seus ensaios na Rua Carvalho
Leal, na casa do Aguinaldo, onde funcionava o diretório do PTB da Cachoeirinha,
nas proximidades da Casa Amarela.
Entre os brincantes pioneiros estavam Humberto Severino (que
depois criou a quadrilha “Os Seringueiros”), Ilsa, Líbia, Baixinho (que era o
“noivo”), Domingos, João de Deus, Zé da Burra, Paulo Lourenço, Pedro Manchete,
Zé Buchinho, Boca de Ouro e Cachoeirinha.
Encarnando o personagem Padre Cícero, João de Deus era tão
convincente na sua caracterização que muitas vezes, ao pegar o ônibus, ouvia os
passageiros falarem respeitosamente “pode sentar, padre!”, “pode passar,
padre!”, “padre, não precisa pagar a sua passagem não, que eu já paguei!”, etc.
Além de criar a coreografia, as fantasias e marcar o ritmo e
os passos, Gentil Bessa começava os ensaios dando um alerta geral:
– Atenção, pessoal! Aqui não tem esse negócio de “anarriê”
nem “anavú”! Aqui é tudo na base da língua portuguesa falada no nordeste! Vamo
prestá atenção no serviço, meu bichim! Arre égua, cabra da peste!
No 1º Festival Folclórico do Amazonas, em 1957, a quadrilha
Primo do Cangaceiro tinha os seguintes brincantes: Gentil Bessa, Zacarias
Teixeira, Iêda Costa, José Inácio Pereira, Marlene Costa, Antônio Ribeiro,
Verônica Marques, Hamiltion Alves, Humbertina Queiroz, Humberto Rodrigues,
Maria Pompéia Lacerda, Umbelino Paiva, Jurandira Firmino, Walter Tavares, Maria
do Carmo, Carlos Belini, Olga Vieira, Estevão Lossa, Janeth Castro, Waldir
Barbosa, Rosa Ramos, Tereza Barreto,
James Dantas, José Oliveira, Fátima
Guimarães, José Ribeiro, Maria Dulce,
Claudionor Silva, Elizabeth Miranda, Paulo Nóvoa, Francisca Alves, Romualdo
Pereira, Darcy Pereira, Florismar Carneiro, Maria de Nazaré, Aquiles Barros,
Maria Clarice, Artur Moreira, Carmem Guimarães, José Rodrigues, Nilse Cabral,
Raimundo Lauriano, Maria Urbina, Raimundo Dantas, Itelvina Mesquita, Maria
Sicléia, Armando Pereira, Raimundo Nonato, Lourdes Dantas, José Virgílio, Oswaldina
Almeida, Walter Bahia, Terezinha Ferreira, Pedro Bentes e Terezinha de Jesus
Souza.
Naquele ano, a quadrilha ficou em um decepcionante terceiro
lugar.
No ano seguinte, Gentil Bessa resolveu “causar”: no dia da sua
apresentação, a quadrilha desfilou pelas ruas da Cachoeirinha com os
cangaceiros montados em cavalos de verdade, comboiando as carroças de tração
animal ornamentadas com fitas coloridas, aonde iam as belíssimas cangaceiras, e
de lá se dirigiu até o local de apresentação no Estádio General Osório.
A novidade conquistou a multidão que se acotovelava no
entorno do tablado. O belíssimo visual dos brincantes, a coreografia impecável
e o trio sanfona-zabumba-triângulo tocando ao vivo baião, forró e xotes de
tirar o fôlego proporcionaram uma magnífica apresentação e a quadrilha Primo do
Cangaceiro conquistou o seu primeiro título, dando início a um festejadíssimo
tricampeonato (1959, 1960 e 1961).
Em 1960, quando o governador Gilberto Mestrinho brigou com o
ex-governador Plínio Coelho, sendo que ambos eram os principais caciques do PTB
no Amazonas, Gentil Bessa reuniu os brincantes na casa do Aguinaldo e entregou
definitivamente a quadrilha Primo do Cangaceiro para Zacarias Teixeira tomar
conta.
É que a maioria dos “padrinhos” da quadrilha (Artur Virgílio Filho,
Justino Melo, Vivaldo Lima, etc.) era ligada a Gilberto Mestrinho.
Fiel a Plínio Coelho, Gentil Bessa preferiu sair do grupo
que havia criado para que a brincadeira não fosse interrompida por conta de
possíveis retaliações políticas, já que o governador Gilberto Mestrinho havia
se transformado no principal incentivador do Festival Folclórico do Amazonas e
era quem liberava pessoalmente a ajuda financeira para as agremiações
folclóricas.
Em 1961, Gentil Bessa fundaria a quadrilha Cabras do Lampião,
na casa do tenente João Evangelista e de dona Nadir Carolina da Silva, pais do
historiador Alvadir Assunção, localizada na Rua Waupés, entre a Codajás e a J.
Carlos Antony. Dona Nadir se transformou em madrinha da nova quadrilha formada
apenas por “plinistas históricos”.
Entre os fundadores da quadrilha Cabras do Lampião estavam
Alvadir, Alvanir, Tibiriçá, Zé Nariz de Papagaio, Ofir Cabeça de Mapa, Boca de
Ouro, Zé da Burra, Romualdo, Pedro Manchete, Lucindo, Louro, Zé Buchinho,
Francisco Fotógrafo, Careca, Morcego, as irmãs Torres (Neuza e Neire, a
“Galega”, que foi a “Maria Bonita”), Moça, Nair e as bonecas vivas de São
Raimundo (Fátima, Raquel e Suely). Era um grupo interbairros, com brincantes de
várias localidades da cidade, em um modelo pioneiro que depois seria adotado
por diversos grupos.
Sob o comando de Gentil Bessa, a quadrilha Cabras do Lampião
também conquistou vários títulos no Festival Folclórico do Amazonas, sendo que em
1964 foi considerada a “primeira campeã absoluta do festival” por ter obtido
uma pontuação superior à de todos os demais grupos folclóricos campeões de suas
respectivas categorias.
Gilberto Mestrinho e Bianor Garcia confabulando com Gentil Bessa
O surgimento de novas quadrilhas inspiradas na saga dos
cangaceiros (Nordeste Sangrento, Bando do Antônio Silvino, Cangaceiros da Chapada,
Cangaceiros de Lampião, Bando do Severo Julião, etc.) obrigou a comissão
julgadora do festival a criar uma nova categoria chamada “danças nordestinas”,
com os dois grupos da Cachoeirinha, Primo do Cangaceiro e Cabras do Lampião,
praticamente se revezando, ano a ano, na conquista do título.
Com o início da especulação imobiliária, nos anos 80, que
praticamente desfigurou o bairro da Cachoeirinha, a quadrilha Primo do
Cangaceiro se mudou para Educando e, alguns anos depois, para São Raimundo.
Já a quadrilha Cabras do Lampião se mudou para São
Francisco, depois para São José Operário, depois para o bairro da Raiz e hoje
está na Comunidade da Sharp, no bairro Armando Mendes.
O atual coordenador do grupo, Pedro Vilhena, conta que o
gosto pela dança já passou dele pros filhos, que se envolvem desde cedo no
grupo – e até os netos pequenos já têm o ritmo do baião no pé. “Essa já é a
quinta ou sexta geração que leva essa cultura nordestina pra frente, dando
continuidade ao trabalho dos Cabras de Lampião”, conta Pedro.
Em 2015, com o tema “As Mulheres no Sertão dos Cabras de
Lampião”, o grupo colocou cerca de 120 brincantes na arena do Centro Cultural
Povos da Amazônia.
“Nós resolvemos contar a história de três mulheres que foram
as pioneiras do cangaço em Manaus como as Marias Bonitas dos festivais nas
décadas de 70, 80 e 90: dona Bia, dona Leila Mara e dona Socorro Trindade. A
partir delas, nós também falamos sobre a força da mulher nordestina”, explicou
o coordenador do grupo.
Provando que a dança também é questão de família, o filho de
Pedro, Rogério Vilhena, já assumiu a responsabilidade de criar os figurinos
usados pelos Cabras de Lampião, confeccionados num ateliê improvisado em casa.
“Trabalho já nessa área há doze anos. Quem me ensinou foi justamente a dona Bia,
uma das homenageadas, quando fazíamos isso no quintal dela. Depois, eu assumi
e, agora, a cada ano procuramos evoluir e introduzir coisas novas, sempre se
superando”, afirma.
A evolução e introdução de coisas novas nas tradicionais
brincadeiras de cangaço nem sempre traz o resultado esperado pelos criativos
donos dos folguedos.
Uma das histórias que já entrou para o folclore dos
cangaceiros manauaras aconteceu em 1994, na quadrilha Cabras do Capitão
Labareda, que tinha seu local de ensaio na Rua Ceará, em Santa Luzia.
Comandada por Ulisses Paiva, os cangaceiros iriam encerrar a
apresentação daquele ano no Festival Folclórico do Amazonas promovendo o
justiçamento de um fazendeiro ganancioso (o brincante Gato) e começaram a
ensaiar exaustivamente a cena final: Gato subia num tamborete, com as mãos
amarradas para trás, tinha seu pescoço amarrado por uma corda, que depois
passava por um galho de árvore (simulando o dormente de uma forca), dava várias
voltas no tronco da árvore e finalmente era amarrada com um nó falso.
Quando o Capitão Labareda (Ulisses Paiva) chutasse o
tamborete, Gato ficaria pendurado pelo pescoço durante alguns segundos até o nó
falso desatar do tronco da árvore, a corda se desenrolar e ele cair no chão. A
cena toda não durava dez segundos. O truque foi ensaiado exaustivamente e
funcionava com precisão.
No dia do ensaio geral, entretanto, o cangaceiro Cravo Roxo
(Paulo Sérgio), que era o verdugo oficial e responsável pela amarração do nó
falso, não apareceu na brincadeira e foi substituído às pressas pelo cangaceiro
Lagartixa (Luiz Mário).
O novo verdugo, aparentemente, não foi informado de que o truque
da brincadeira estava no nó falso e não contou conversa: amarrou a corda no
tronco da árvore com um nó de marinheiro.
Quando o Capitão Labareda chutou o tamborete, Gato ficou
pendurado pelo pescoço e nada de o resto da corda se desenrolar do tronco da
árvore. Uns vinte segundos depois, vendo que Gato estava estrebuchando de
verdade, o cangaceiro Juriti (Francisco Souza) pegou rapidamente um terçado e
decepou a corda.
Gato já caiu no chão desmaiado. Foi um corre-corre da
moléstia porque dessa vez quase que o brincante era mesmo enforcado de verdade.
O Capitão Labareda acabou com a presepada do “justiçamento” no mesmo dia.
Com o falecimento de Zacarias Teixeira, os brincantes da
campeoníssima dança nordestina Primo do Cangaceiro resolveram encerrar a
brincadeira. “Não fazia sentido continuar a quadrilha sem o nosso principal
destaque, que era a própria alma da brincadeira”, resume o aposentado Luiz
Jorge, que brincou no grupo durante 40 anos.
Das três pioneiras danças nordestinas de Manaus quem também
continua na ativa até hoje é a Nordeste Sangrento, batizada com esse nome por
conta de uma das músicas do cantor e compositor pernambucano Luiz Gonzaga.
Com mais de 40 anos de existência, o grupo foi fundado em
abril de 1964 no bairro da Raiz, e hoje está sediado no bairro do São José,
também na zona Leste.
Seu Edil Lira, coordenador do grupo, já é “figurinha”
conhecida nos festivais de Manaus, por cantar e soltar um vozeirão comparado ao
próprio Luiz Gonzaga.
“Temos nossas próprias letras também, nosso hino, nossas
músicas, e, claro, muito Gonzagão. Já tive até muita música lançada e copiada
por outros grupos. Fazemos uma dança nordestina legítima, que representa a
região com o som e o ritmo de lá”, ressalta Edil Lira.
No festival de 2015, o grupo apresentou como tema a seca
nordestina.
Entre os outros grupos de danças nordestinas que continuam
mostrando a saga dos cangaceiros e a cultura sertaneja de raiz, destacamos os
seguintes: Bando de Lampião, Descendentes de Lampião, Guerreiros de Lampião,
Lampião Rei do Sertão, Justiceiros do Sertão, Cangaceiros Independentes,
Cangaceiros do Vale Perdido, Cangaceiros de Lampião, Cabras do Capitão Corisco,
Cabras do Capitão Cabeleira, Vingadores do Sertão, Cabras do Capitão Rufino,
Cabras do Capitão Galdino, Cangaceiros de Saturnino, Filhos de Lampião,
Cangaceiros de Asa Branca, Vingadores de Virgulino, Cangaceiros de Aparício,
Cabras do Capitão Silvino, Filhos de Maria Bonita, Cangaceiros do Cariri,
Cangaceiros de Thianguá, Pisada do Sertão e Cangaceiros do Juazeiro.
4 comentários:
Sou filha de gentil Queiroz bessa gostei muito da sua reportagem ,meu pai agradece.
Se vc quiser posso ajudar a incrementar sua reportagem te mando fotos do papai
Tenho muita vontade de conhecer a QUADRILHA CABRAS DO LAMPEÃO, fundada pelo meu amado pai GENTIL QUEIROZ BESSA,a qual minha mãe também fez parte. Muito feliz em saber que a QUADRILHA ainda existe e que inda lembram de meu pai, que tanto ama e se emociona ao lembrar de seus tempos de cangaceiro.
Muito bom o artigo porém houve um pequeno erro a dança nordestina cujo o pequeno acidente aconteceu foi a dança nordestina cabras do capitão cabeleira não labareda
Outra dança que dominou os anos 80 se chama canguaceiros de thiangua
Meu nome e Roberto,hoje moro no Rio de Janeiro desde 1960. Brinquei na quadrilha Primo do Cangaceiro em 1958 quando os ensaios era na casa do Agnaldo e D.Ruth, a minha parceira era a Ilda filha do Agnaldo, a outra filha a Fátima era a parceira do Avelino (que me levou para a quadrilha). Até hoje sinto saudades daquele tempo principalmente quando chega o mês de junho escuto "forro no escuro" que era a musica que marcava o nosso ritmo. Termino este comentário com um pequeno versinho que fala do amor pela Cachoeirinha.
No dia em que eu morrer
Peço uma breve oração
Que ponham no meu caixão
Um punhado de terrinha
Mas que seja lá da Cachoeirinha
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