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terça-feira, junho 18, 2013

Bilhete de sereno


Hildegardes Viana

É um leitor da velha guarda quem me pergunta se sereno é folclore. Fala como conhecedor do assunto, relatando que comprar bilhete de sereno já foi deleite de muita gente. Não apenas o bilhete de sereno de um sujeito poderia o levar a empurrões e a mal entendidos. Há também serenos diferentes, se se pode assim classificar a espécie.

Era ser convidado ou comprar entrada para ficar de parte no salão do antigo Hotel Sul Americano, onde está na atualidade o edifício da Sulacap, assistindo jantares de gala oferecidos a gente de posição, onde só comparecia o madamismo.

Também no Politeama, muitas pessoas conseguiam entrar, por convite ou caradura, para olhar os banquetes políticos levados a efeito no palco daquele velho teatro.

O leitor se recorda do casamento de um seu irmão, quando a criançada, inclusive ele, leitor, andou surrupiando coisas para levar aos amigos e boleeiros de carro que espiavam do lado de fora.

Naquele tempo, existia uma patrulha policial, constituída de soldados de cavalaria, que, depois de certa hora, aparecia pelas ruas, farejando desordeiros.

Pois a ronda nunca teve grande trabalho com o pessoal do sereno.

Quanto namoro começou com ele no sereno e ela dentro da festa!

Sereno é folclore catalogado nos itens de usos e costumes.

Figura no dicionário de Câmara Cascudo que elucida que “todas as festas tiveram e tem, com outro nome, o sereno que dizemos hoje assistência. Saída de cortejos reais, casamentos, bailes e baquetes eram os grandes motivos do sereno, comentários, críticas, sugestões, mesmo versos e, às vezes, cantigas tornadas populares. Ir assistir à entrada da sociedade elegante no teatro, nos bailes oficiais, ou mesmo ficar, obstinadamente, sofrendo frio e calor durante a festa inteira ‘vendo com os olhos e comendo com a testa’, constituía dever de muita gente. Nascia daí a primeira reportagem feroz dos pequeninos dramas e comédias sociais”.

A expressão comprar bilhete de sereno deve vir, provavelmente, do fato de, ontem como hoje, graduarem os preços das localidades para os teatros.

No Teatro São João, no Politeama e, talvez, no São Pedro de Alcântara, além de frisas, camarotes, cadeiras de primeira e segunda, balcões e galerias, vendiam jardim.

Para a torrinha, nome popular das galerias, afluía quem não tinha posses nem roupas finas.

Quando havia roupa e nenhum dinheiro, o recurso era o jardim.

O indivíduo entrava, mas não sentava.

Ficava de pé, ao fundo da platéia, olhando qual o lugar vago no primeiro ato, para poder abancar-se no segundo.

Quem não entrava na festa, ficava no sereno, comprava bilhete de sereno.

É o que julgo, salvo melhor parecer.

Quem não come na panela, folga nela, reza um belho ditado.

Tal devia aplicar-se ou se aplica, como uma luva, aos frequentadores de sereno.

Naqueles recuados tempos em que a cidade era pequena e as festas familiares ser repetiam com frequência, aniversários, batizados, pedidos de casamentos, casamentos, funções, mês de Maria, trezena de Santo Antônio e novenas de São João, missas de festa, volta de romaria, tudo era motivo para um sereno mais ou menos animado.

Função, diga-se de passagem, foi um termo muito em voga até o princípio da I Grande Guerra, designando solenidade, festividade, festim, espetáculo, regabofe.

Realizava-se função no teatro, na casa do barão, como do marceneiro.

Para as funções, é óbvio, as senhorinhas, quando admitidas, compareciam em suas melhores roupas e munidas de suas armas mais eficazes para lutar por um noivo.

As casas de respeito ficavam com suas salas de visita de janelas cerradas, depois do por-do-sol, a não ser que houvesse visita ou festa.

Era fácil distinguir se havia festa ou apenas visitantes.

Festa era denunciada pelo constante entrar e sair de pessoas apressadas. à falta de distrações ou levado pelo prazer de bisbilhotar, o indivíduo ficava plantado no meio da rua, se a casa era alta, ou no passeio, se a janela era baixa o bastante para permitir ver melhor.

Se o peitoril dava para debruçar, os espectadores, sem maiores cerimônias, ajeitavam-se com a cara para dentro e assim ficavam, a não ser que o dono da casa viesse reclamar.

Era divertida para os rapazes a presença de senhorinhas que viviam mais ou menos encafuadas.

Para alguns elementos do sexo masculino, a abelhudança chegava ao ponto de chamarem criados ou conhecidos, indagando sobre as pessoas ou coisas, fazendo comentários em voz alta, sem preocupações pelo que desse e viesse.

O piano começava a tocar e os pares deslizavam.

O sereno vibrava aplaudindo ou pateando os dançarinos.

Quando mal se pensava, a rua estava coalhada de pessoas desocupadas, dedicadas simplesmente a gozarem o prazer alheio…

É como diz o ditado:

— Os olhos folgam de ver.

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