Hildegardes Viana
É um leitor da velha guarda quem me pergunta se sereno é folclore. Fala como conhecedor
do assunto, relatando que comprar bilhete de sereno já foi deleite de muita
gente. Não apenas o bilhete de sereno de um sujeito poderia o levar a empurrões
e a mal entendidos. Há também serenos diferentes, se se pode assim classificar
a espécie.
Era ser convidado ou comprar entrada para ficar de parte no
salão do antigo Hotel Sul Americano, onde está na atualidade o edifício da
Sulacap, assistindo jantares de gala oferecidos a gente de posição, onde só
comparecia o madamismo.
Também no Politeama, muitas pessoas conseguiam entrar, por
convite ou caradura, para olhar os banquetes políticos levados a efeito no
palco daquele velho teatro.
O leitor se recorda do casamento de um seu irmão, quando a
criançada, inclusive ele, leitor, andou surrupiando coisas para levar aos
amigos e boleeiros de carro que espiavam do lado de fora.
Naquele tempo, existia uma patrulha policial, constituída de
soldados de cavalaria, que, depois de certa hora, aparecia pelas ruas,
farejando desordeiros.
Pois a ronda nunca teve grande trabalho com o pessoal do
sereno.
Quanto namoro começou com ele no sereno e ela dentro da
festa!
Sereno é folclore catalogado nos itens de usos e costumes.
Figura no dicionário de Câmara Cascudo que elucida que
“todas as festas tiveram e tem, com outro nome, o sereno que dizemos hoje
assistência. Saída de cortejos reais, casamentos, bailes e baquetes eram os
grandes motivos do sereno, comentários, críticas, sugestões, mesmo versos e, às
vezes, cantigas tornadas populares. Ir assistir à entrada da sociedade elegante
no teatro, nos bailes oficiais, ou mesmo ficar, obstinadamente, sofrendo frio e
calor durante a festa inteira ‘vendo com os olhos e comendo com a testa’,
constituía dever de muita gente. Nascia daí a primeira reportagem feroz dos
pequeninos dramas e comédias sociais”.
A expressão comprar bilhete de sereno deve vir,
provavelmente, do fato de, ontem como hoje, graduarem os preços das localidades
para os teatros.
No Teatro São João, no Politeama e, talvez, no São Pedro de
Alcântara, além de frisas, camarotes, cadeiras de primeira e segunda, balcões e
galerias, vendiam jardim.
Para a torrinha, nome popular das galerias, afluía quem não
tinha posses nem roupas finas.
Quando havia roupa e nenhum dinheiro, o recurso era o
jardim.
O indivíduo entrava, mas não sentava.
Ficava de pé, ao fundo da platéia, olhando qual o lugar vago
no primeiro ato, para poder abancar-se no segundo.
Quem não entrava na festa, ficava no sereno, comprava
bilhete de sereno.
É o que julgo, salvo melhor parecer.
Quem não come na panela, folga nela, reza um belho ditado.
Tal devia aplicar-se ou se aplica, como uma luva, aos
frequentadores de sereno.
Naqueles recuados tempos em que a cidade era pequena e as
festas familiares ser repetiam com frequência, aniversários, batizados, pedidos
de casamentos, casamentos, funções, mês de Maria, trezena de Santo Antônio e
novenas de São João, missas de festa, volta de romaria, tudo era motivo para um
sereno mais ou menos animado.
Função, diga-se de passagem, foi um termo muito em voga até
o princípio da I Grande Guerra, designando solenidade, festividade, festim,
espetáculo, regabofe.
Realizava-se função no teatro, na casa do barão, como do
marceneiro.
Para as funções, é óbvio, as senhorinhas, quando admitidas,
compareciam em suas melhores roupas e munidas de suas armas mais eficazes para
lutar por um noivo.
As casas de respeito ficavam com suas salas de visita de
janelas cerradas, depois do por-do-sol, a não ser que houvesse visita ou festa.
Era fácil distinguir se havia festa ou apenas visitantes.
Festa era denunciada pelo constante entrar e sair de pessoas
apressadas. à falta de distrações ou levado pelo prazer de bisbilhotar, o
indivíduo ficava plantado no meio da rua, se a casa era alta, ou no passeio, se
a janela era baixa o bastante para permitir ver melhor.
Se o peitoril dava para debruçar, os espectadores, sem
maiores cerimônias, ajeitavam-se com a cara para dentro e assim ficavam, a não
ser que o dono da casa viesse reclamar.
Era divertida para os rapazes a presença de senhorinhas que
viviam mais ou menos encafuadas.
Para alguns elementos do sexo masculino, a abelhudança
chegava ao ponto de chamarem criados ou conhecidos, indagando sobre as pessoas
ou coisas, fazendo comentários em voz alta, sem preocupações pelo que desse e
viesse.
O piano começava a tocar e os pares deslizavam.
O sereno vibrava aplaudindo ou pateando os dançarinos.
Quando mal se pensava, a rua estava coalhada de pessoas
desocupadas, dedicadas simplesmente a gozarem o prazer alheio…
É como diz o ditado:
— Os olhos folgam de ver.
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