Vanessa Barbara
De pouco ou nada adiantou fazer pensamento positivo, acender
uma vela aos deuses do cinema ou rezar uma novena pelo discernimento espiritual
de Baz Luhrmann: a mais recente adaptação de O grande Gatsby, que estreou na última sexta-feira, é mais
deprimente do que Zelda em dia de cabelo ruim.
A crítica americana foi quase unânime em destroçar o filme.
Numa resenha para a revista New Yorker, o jornalista David Denby afirmou que
Luhrmann não é um cineasta, mas um diretor de videoclipes com recursos
infinitos e uma impressionante ausência de bom gosto.
Peter Travers, da Rolling Stone, pediu silêncio aos leitores
para ouvir F. Scott Fitzgerald revirando-se no túmulo. “O filme é tão rígido e
morto quanto uma vitrine de butique de luxo”, declarou. Já Rex Reed, do New
York Observer, disse que a adaptação tem a força narrativa de uma água de
torneira. O New York Times classificou a obra de rasteira e agudamente
inautêntica. No Wall Street Journal, Joe Morgenstern a acusou de elefantíase
artística. Todos reprovaram o excesso, a superficialidade e a vulgaridade desta
superprodução que custou 150 milhões de dólares.
Luhrmann, que assina o roteiro com Craig Pearce (ambos de Moulin Rouge), transformou o texto
sutil, denso e complexo de Fitzgerald numa orgia visual e hiperativa com
dançarinas seminuas, zebras infláveis, plumas, pérolas, mafiosos de fraque,
trapezistas, palhaços, acrobatas e uma orquestra no meio da piscina, como “um
baile de formatura à fantasia invadido pelo Cirque du Soleil”, comparou Reed.
A cena mais infeliz é a da primeira aparição de Jay Gatsby.
No livro, a apresentação é feita casualmente durante uma festa na mansão. Nick
conversa com um desconhecido que, no fim, se identifica como o anfitrião,
desculpando-se pela falta de modos. No cinema, a câmera dá um close grosseiro
em Leonardo DiCaprio, que exclama: “Eu sou Jay Gatsby!” ao som de Rhapsody in Blue, de Gershwin, e
emoldurado pelo espocar de fogos de artifício.
(Há tantos closes em O grande Gatsby que o crítico Rex Reed
o chama de “um filme sobre orelhas”.)
O pior de tudo, porém, é o roteiro. Por motivos didáticos,
recorreu-se a um sofrível recurso de framing
device que sustenta o enredo: Nick está internado num sanatório e conta
seus dissabores a um psiquiatra, que o aconselha a transformá-los em livro. As
falas em off são mal escritas, soporíferas e redundantes, atribuindo a Nick uma
personalidade rasa. Muitas vezes, ele narra uma cena e então a repete em forma
de diálogo, enquanto na tela pipocam as palavras datilografadas — em 3D, ainda
por cima. (Não há nenhum motivo terreno que explique a adoção desse formato.)
Outra prova de que o diretor esforçou-se para legar às
massas um verniz do romance: a expressão old
sport (meu velho) é repetida não menos do que 55 vezes, provavelmente para
quem é surdo de um ouvido. No momento em que Nick descreve a sensação de estar
“dentro e fora” das situações, Luhrmann acha cabível mostrar o narrador
materializando-se na cena e depois fora dela, o que me lembrou vivamente um
episódio dos Teletubbies.
No livro, o relato da reunião no apartamento de Myrtle é
soturno, esquisito e incoerente, cheio de lacunas. A embriaguez de Nick é mais
um estado letárgico do que uma frenética orgia regada a ecstasy, porém esta
parece ter sido (como sempre) a opção de Luhrmann.
Já a tensão psicológica entre os personagens indiferentes e
descuidados (até o narrador tem defeitos de caráter) dá lugar, no filme, a um
bacanal espalhafatoso e violento, anulando as nuances do livro numa barulhenta
sucessão de festas e futilidade. Não há espaço para ambiguidades nem
delicadeza.
O ponto forte desta adaptação é a fotografia. Por meio de
reconstituições computadorizadas de Nova York nos anos 20, veem-se
impressionantes cenas panorâmicas de Long Island que situam até o espectador
mais perdido; uma belíssima tomada aérea do carro amarelo atravessando o Vale
das Cinzas em direção a Manhattan; vistas detalhadas das duas penínsulas
separadas pela baía; travellings da ponte Queensboro; a imponência da mansão
dos Buchanan e a extravagância do palácio de Gatsby.
É certo que, às vezes, Nova York fica parecendo a Hong Kong
de Batman: O Cavaleiro das Trevas, mas isso é o de menos. Gostei do
expressionismo dos trabalhadores do Vale das Cinzas, das janelas dos
apartamentos em Manhattan e do saxofonista solitário.
Por outro lado, a trilha sonora é de supurar o apêndice. Em
vez de swing jazz, charleston e foxtrote temos hip-hop, Beyoncé e André 3000
comandados pelo rapper Jay-Z, que assina a catastrófica trilha.
Em vez de lindy hop, shimmy e vaudeville, temos uma dança
estilo rave totalmente fora de contexto. “Nada como o hip-hop para acrescentar
relevância a um clássico”, ironiza Peter Travers.
Se a ideia era mesclar a estética e os ritmos dos anos 20
com a atualidade, o único acerto foi a versão jazzística para Crazy in Love, de Beyoncé, executada
pela Bryan Ferry Orchestra. Podia ter seguido essa lógica nas outras faixas.
Rebatendo as críticas, Baz Luhrmann diz que o romance de
Fitzgerald também foi mal recebido na época, e que os resultados da bilheteria
é que irão julgar a qualidade do filme.
Talvez a intenção do diretor tenha sido mimetizar Jay
Gatsby, um “homem saído da própria concepção platônica de si mesmo”, que,
reinventando-se, esvaziou-se de substância e verdade. Um galã de anúncio feito
para agradar. Como observa o Homem dos Olhos de Coruja, os livros de Gatsby são
absolutamente verdadeiros, mas suas páginas nunca foram cortadas.
O filme de Luhrmann é como a biblioteca do protagonista: uma
suntuosa parede de encadernações verdadeiras, mas jamais lidas. Uma ilusão que
só vai até certo ponto, não passando das aparências. “Mas o que vocês queriam?
O que esperavam?”, conclui o Homem dos Olhos de Coruja.
Nesse sentido, Luhrmann nos deu uma interpretação perfeita
de O grande Gatsby.
Vanessa Barbara nasceu
em 1982, é jornalista e escritora. É autora da graphic novel A máquina de
Goldberg (Quadrinhos na Cia., 2012, em parceria com Fido Nesti), O livro
amarelo do terminal (Cosac Naify, 2008, Prêmio Jabuti de Reportagem), O verão
do Chibo (Alfaguara, 2008, em parceria com Emilio Fraia) e do infantil Endrigo,
o escavador de umbigo (Ed. 34, 2011). É tradutora e preparadora da Companhia
das Letras, cronista da Folha de S.Paulo e colaboradora da revista piauí. Ela
contribui para o blog da companhia com uma coluna mensal.
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