Ademir Luiz, da revista Bula
Os norte-americanos, sendo donos do cenário primordial,
criaram o faroeste clássico, pelo qual se expressaram artistas brilhantes como
John Ford, Nicholas Ray, Howard Hawks e Sam Peckinpah. Em sua esteira
comercial, os italianos desenvolvendo o chamado faroeste “spaghetti”, de muitos
djangos, gemmas e hills; e um único e grande Sérgio Leone. No Brasil houve
diversas tentativas de emular o faroeste. Filmes como “O Cangaceiro” (1953) e
“A Sina do Aventureiro” (1958) são exemplos. Agora, com o lançamento de
“Faroeste Caboclo”, baseado na canção homônima da banda Legião Urbana, temos a
tentativa de desenvolvimento de um novo subgênero calcado em cenários urbanos,
violência estetizada e doses homeopáticas de sexo, drogas e rock and roll, que
talvez se possa, provisoriamente que seja, chamar de “faroeste feijoada”.
2013 ficará conhecido como o ano de Renato Russo no cinema.
Primeiro estreou a cinebiografia “Somos tão Jovens”, de Fernando Morello,
mostrando os anos de formação do cantor e compositor carioca. De modo geral, o
filme foi malhado pela crítica. Acharam-no superficial e “malhação” demais para
a profunda complexidade psicológica do artista que pretendia retratar.
Considero essa perspectiva válida, embora guiada por expectativas emotivas de
fãs. A esperança era a de que “Faroeste Caboclo”, o segundo filme russoniano da
temporada, pudesse compensar a decepção.
Primeira pergunta: é um bom filme? Sim, sem dúvida,
considerando os padrões tupiniquins e a proposta de sua estrutura interna. A
direção de René Sampaio é ágil e frenética. O protagonista João de Santo Cristo
é vivido com energia pelo ator Fabrício Boliveira. A bela Ísis Valverde encarna
uma Maria Lúcia usando seu infalível carisma novelesco. Todo o elenco de
coadjuvantes, do vilão Jeremias (Felipe Abib) ao primo Pablo (César Trancoso),
é competente, com destaque para Antônio Calloni, como um policial corrupto.
Para lamentar, apenas o desperdício da presença de Marcos Paulo, fazendo um
senador (quando? onde?), pai de Maria Lúcia.
A parte técnica, da fotografia a montagem, apresenta ótimo
nível e a direção de arte, embora pobre, não compromete. A trilha sonora de
Lucas Marcier é discreta e certeira, fazendo uso comedido da música título.
Palmas para a criativa homenagem que fizeram a Legião Urbana numa cena de show.
O ponto baixo fica para a exageradamente solene narração em off, quase tão
desnecessária e fora de tom quanto a de “Blade Runner” de 1982.
Segunda pergunta: o longa-metragem “Faroeste Caboclo” é uma
boa adaptação da música? Não exatamente. Pode ser considerado satisfatório se o
objetivo do espectador for se divertir assistindo violência, vingança e amor
bandido, num filme de ação com sotaque nacional. Mas peca em diversos aspectos
ao apresentar-se como adaptação de uma história muito, talvez excessivamente,
conhecida. O que pode salvá-lo nesse aspecto é que, talvez, o espectador fique
de tal modo anestesiado pela overdose de estímulos sensoriais oferecidos que
não se dê conta dos problemas.
Diferentemente de “Somos tão Jovens”, “Faroeste Caboclo” não
parte de uma trajetória biográfica real repleta de desdobramentos que exige que
o cineasta faça opções, edite, escolha um ponto de vista. O enredo cantado na
música “Faroeste Caboclo”, composta no final da década de 1970 e lançada
comercialmente no disco “Que País é Este (1978 – 1987)”, é simples, direto e
cru. Segue a tradição da literatura de cordel. A riqueza não está na letra
propriamente dita, que em si é bastante esquemática, mas no que ela pode
representar enquanto representação de uma realidade sociocultural. O grande
mérito de Renato Russo, então Trovador Solitário, foi, mesmo sendo membro da
classe média burguesa, captar algo da essência do candango trabalhador e
transformar isso em narrativa. Dessa premissa simples poderia ser extraído um
vasto universo de reflexões.
René Sampaio optou por ficar na superfície e entregar um
produto industrialmente bem-feito, que obedece todas as convenções do gênero
ação/policial, mas pouco profundo. Não que se deva exigir complexidade
filosófica desses filmes, mas exemplos como os de “Tropa de Elite” (2007), “O
Homem do Ano” (2003), “O Invasor” (2001) e “Cidade de Deus” (2002) mostram que
é possível e desejável sair do senso comum. Trata-se de um filme
milimetricamente planejado para impressionar o público médio, que ingenuamente
ainda se encanta com edição rápida, tiros, sangue falso e um pouco de sexo,
para incrementar a emulação de transgressão. Essa opção pela violência gráfica
e as infindáveis citações aos faroestes de Sérgio Leone, dá a falsa sensação de
sofisticação temática e formal, responsável por agradar intelectualmente os fãs
do Legião Urbana que ficaram decepcionados pelo excessiva suavidade de “Somos
tão Jovens”.
O roteiro produzido pela equipe capitaneada por Marcos
Bernstein e Victor Atherino optou por não seguir à risca a narrativa da música.
Isso não representa necessariamente um problema, mas em muitos casos fizeram
substituições equivocadas para preencher as lacunas. Limaram, por exemplo, o
“General de dez estrelas”, que poderia render uma interessante análise sobre o
declínio do Regime Militar, que, aliás, desaparece do cenário na Brasília do
filme. O roteiro não abre espaço para esse tipo de problematizações e abraça a
lógica dualista do bem contra o mau, ao mesmo tempo em que, ancorado em sua
cosmética suja, finge ser contestador.
O problema crucial é a transformação da saga de João de
Santo Cristo em um batido e sonolento conflito de classes. Pobres contra ricos.
Traficantes pobres contra traficantes ricos. Pai rico contra pretendente da
filha pobre. Brancos ricos contra negro pobre. Polícia corrupta ao lado dos
ricos para oprimir os pobres. Como não poderia deixar de ser, os ricos são
intrinsicamente fúteis, cruéis e preconceituosos. Os pobres podem até possuir
personalidades dúbias e violentas, mas são guiados por rígidos códigos éticos,
construídos e naturalizados na prática cotidiana de suas comunidades. Se
cometerem ações moralmente condenáveis é porque são levados a isso, fazem para
sobreviver. Reagem ao mundo cão no qual estão inseridos. Faz lembrar Paulo
Francis quando ironizava que “se vejo um pobre num filme brasileiro tenho
vontade de sair gritando: é santo! é santo!”. Nesse caso, é mesmo santo. Santo
Cristo! “Que o povo dizia que era santo porque sabia morrer”. Morrer, não viver
como um carola que, por acaso, é matador.
O João de Santo Cristo do filme possui espírito de artista:
gosta de esculpir flores para sua amada. É homem de uma mulher só, não um
libertino que “comia todas as menininhas da cidade” ou “ia na zona da cidade
gastar todo seu dinheiro de rapaz trabalhador”. O João de Santo Cristo do filme
não rouba “o dinheiro que as velhinhas colocavam na caixinha do altar” porque
papai não queria um filho ladrão. Traficante de maconha tudo bem. 100% natural.
Cocaína não, que é droga química e, portanto, coisa de vilão capitalista. Sacos
de cocaína levam tiro. Álcool nem aparece para ele poder se embebedar e “no
meio da bebedeira descobrir que tinha outro trabalhando em seu lugar”.
O João de Santo Cristo do filme não é um “self made man”
como na música. Esse João de Santo Cristo não “fez amigos, frequentava a Asa
Norte e ia pra festa do rock pra se libertar” ou “ficou rico e acabou com todos
os traficantes dali”. Nada disso, o João do filme é como um João de Garrincha;
não é João, é Zé, um Zé Ninguém. Uma eterna vítima dos ricos, brancos,
poderosos e corruptos. Nunca age, apenas reage. Para sublinhar sua pretensa
simplicidade franciscana, o roteiro fez de João um analfabeto, ignorando que na
música ele frequentava a escola e “até o professor com ele aprendeu”. Como a
história se passa antes da promulgação da Constituição de 1988, não sabendo
ler, o pobre João não poderia nem votar. Coitado!
Também me escapam os motivos da opção por apresentar João de
Santo Cristo como negro. Os versos da letra onde se ouve “não entendia como a
vida funcionava — discriminação por causa da sua classe ou sua cor” não me
parecem conclusivos. Imagino que tenha sido por influência da obsessão de parte
da esquerda brasileira em imitar os norte-americanos que catalogam todo mestiço
como sendo negro. Até onde sei, tradicionalmente, a palavra caboclo indica um
indivíduo proveniente da miscigenação entre o caucasiano e o indígena. O
folclorista Câmara Cascudo, no “Dicionário do Folclore Brasileiro”, ensina que
a origem etimológica da palavra “caboco” (sem o L) deriva do tupi “caa-boc” (o
que vem da floresta) ou “kari’boca” (filho do homem branco).
Para quem considera que estou sendo preciosista, lembro que
na edição número 36, de 1988, da saudosa revista “Bizz”, em sua página 52, o
próprio Renato Russo declarou que: “João de Santo Cristo é um garoto de classe
média e as pessoas, parece, não percebem isso. Ele era filho de fazendeiro e o
pai dele foi assassinado. Ele vai para o reformatório porque não tem ninguém
para tomar conta dele. Mataram praticamente toda a sua família e, por isso, ele
é revoltado (…). Ele é realmente de classe média, e a música inteira é ele
tentando voltar para o meio que conhece. João se vê obrigado a conviver com o
pessoal mais pobre e, por isso, ele percebe aquela coisa de preconceito e tudo
mais, coisas que ele nunca tinha visto antes. Quer dizer, caminha para outro
lado. Santo Cristo tem uma certa nobreza! Não sei se as pessoas percebem. Acho
que pensam em Santo Cristo como um pé-rapado. Para mim ele é um heroizinho tipo
James Dean, como naquele filme ‘Vidas amargas’”. Claro que é possível
justificar que se trata de uma interpretação livre da música original. Pode
ser, mas o equivoco é assumir-se como uma leitura literal.
Contudo, o principal problema do filme não é a pasteurização
do protagonista e sim a infeliz ideia de apresentar Maria Lúcia como uma
patricinha brasiliense. A história de amor bandido do casal, apesar de
funcionar na tela, acabou limitada a seu aspecto “a dama e o vagabundo”,
tornando-se um obstáculo desnecessariamente auto imposto. O resultado é que o
arco dramático de Maria Lúcia foi alterado. De uma interessante “filha da puta
sem vergonha” que se casa com Jeremias por desistir de esperar eternamente por
João, Maria Lúcia tornou-se uma típica mocinha de filme de ação, que se sacrifica
em nome do herói marrento.
O cinema brasileiro, a despeito de todos os seios e nádegas
que mostra, ainda tem dificuldades em aceitar protagonistas femininas que não
sejam donzelas em perigo ou santas abnegadas. Para disfarçar, fazem-nas fumarem
maconha como sinal de que são descoladas e independentes. Nesse caso, como
Maria Lúcia não fez nada, não “se arrependeu depois” e o fato de que “morreu
junto com João seu protetor” revelou-se um anticlímax, já que o pobre João
sequer pôde lhe dizer “dá uma olhada no meu sangue e vem sentir o teu perdão”.
Perdoar o que?
O duelo final, a despeito da boa fotografia, foi muito
fraco. Não apenas pela coreografia tacanha e a montagem truncada. Limitou-se a
uma briga de vizinhos de final de semana, que, no máximo, ganha uma nota de
duas linhas no rodapé das páginas policiais de segunda-feira. Deveria ser um
evento grandioso, reunindo um “traficante de renome” e um “bandido destemido e
temido no Distrito Federal”. Um evento midiático televisionado, com todos
sabendo “a hora, o local e a razão”.
Esse seria o momento de René Sampaio citar “Um Dia de Cão”
(1975), de Sidney Lumet, abrindo espaço para o público refletir sobre a
mercantilização da violência urbana pelos meios de comunicação de massa e o
fato de que “a alta burguesia da cidade não acreditou na estória que eles viram
na TV”. Que pelo menos colocasse umas bandeirinhas, um carrinho de pipoca e
meia dúzia de figurantes. Seria pedir muito? Bastava seguir a receita da
feijoada que está no encarte do CD.
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