Amaral Cavalcante
Passou um engenho de rapadura, um carcará pousado na cerca. A vaquinha de ar pensativo regurgitava capim - o olho abestalhado de quem sabe tudo, mas nem taí. Um alvoroço de preás chispa invisível na beira do mato. O calango também tomou um susto danado e ficou imóvel no pé de mulungú, só o olho rodando o mundo em volta, até a próxima trovoada.
No mar de capim gordura, o vento assanhava as nhampupés e na clareira da encosta umas casinhas de pano-de-prato fumegam o café, as chaminés pendendo enegrecidas como navios encalhados no oceano verdão do pasto. Foram ficando pra trás.
Ia-se embora em cima de um caminhão!
Queria sair de si, dos corredores da casa onde os fantasmas brincavam de esconde-esconde, das besteiras sem serventia nos alfarrábios- guardiões de poeiras cotidianas. Queria fugir dos horizontes impossíveis na sua cidade interior.
Juntou cacos no bornal, pegou sua coleção de auroras, tudo o que lhe restava em valentia e decidiu partir. Ia ser um coletor de sonhos trepidantes, o resto da vida engolindo estrada na carroceria de um caminhão.
Então, chegou de tardinha! O sol rajava em aquarelas sanguíneas. Traços surreais reinventavam a paisagem em impossíveis croquis. Um mourão se alongando como minarete, loooongo, se espreguiçando na estrada. Mais longe, uma pedra derramava ouro sobre um fio de água. O velho dicurizeiro impedindo a passagem, estendido em sombra e veracidade no chão da rodagem, passou. Passou um mandacaru rezando agoniado que as coisas iam se envultando.
O cruzeiro na serra se incendiava, o carneiro dourado acomodado aos seus pés. A paisagem pedia silêncio. Na sombra da mata um bordado de nuvens céleres, acenava. Ovelhinhas e ogros tristes a procurar repouso, que era chegada a hora!
De tardinha, o sono grená dos passarinhos peja os umbuzeiros dessa paz restrita às criaturas de Deus, quando o por do sol pinta dourado o rumor da vida e silencia o clamor das coisas. Então, o pé de jaca também já vai dormir que embaixo dele uma vaca malhada lambe a cria e recomenda em sussurro: bezeeeerro, vamos dorrrrmir.
Só ele inda corria o mundo.
Bateu uma dorzinha não sei onde, que nem dor direito era. Era uma tristeza banal sem pé nem cabeça, a falta de não sei o que lhe incomodando. Falta de ar não era que ele engolia o vento veloz, a natureza lhe invadindo o nariz em lufadas e cheiros. Ar, novos ares lhe soprando vida, o peito inflando em possibilidades. Não viesse ninguém dormir nos seus cabelos que o alvoroço ali era tanto.
Escancarava a boca engolindo as alfaias da noite e, corajoso ainda, guardava o sopro do mundo a lhe invadir o peito. Mas escureceu de vez. A dor fininha muito doida pinicando! Onde dormiria ele, cadê seus lençóis, as quenturas do quarto, uma moringa esfriando no peitoril da janela? Era a saudade dos pés no chão, da vida jabá nos becos da vida, das vielas confortáveis na cidade. Saudade?
Para! que ele desce aqui.
Amaral Cavalcante é jornalista, poeta e boêmio. Contatos através do email: folha.da.praia@terra.com.br
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