A última palavra em
tecnologia tinha acabado de chegar em Santarém: o telefone residencial, pretão,
imenso. O nosso ficava em cima do arquivo de aço do escritório do meu pai.
Pouca informação saía
ou chegava através dele, mas o tititi das comadres ganhou um novo instrumento,
o papo furado se expandiu além dos limites dos botecos e da pracinha.
Mesmo a troca de
desaforos ganhou um novo aliado. Como meu irmão estava sempre trocando sopapos
com Manoel, vizinho da casa ao lado, mamãe e a dona Mary, em vez de ir para a
porta da rua bater boca, passaram a fazer isso pelo telefone.
O recorde de chamadas
deve ter sido naquela tarde que mudou tudo na minha casa. Mamãe saiu e ficamos
na varanda ali numa boa com a Ismênia, que sumiu da nossa vista.
Daí a pouco ouvimos um
bafafá no quarto dos meus pais. Mamãe tinha voltado e encontrado papai e
Ismênia na cama, na maior farra de cobertor.
Eu não conseguia
entender nada daquela confusão. Só ouvia os gritos da minha mãe. Papai saiu do
quarto e mamãe continuou gritando com a Ismênia lá dentro. Aí, mamãe saiu atrás
de papai, eu atrás dela.
Ele estava no
escritório, descalço, sem camisa, sentado numa cadeira. Parecia brincar com a
Mauser, que ganhara de presente de seu Elias Hage, apontada na têmpora.
Mamãe deu um berro,
voou pra cima, bateu na mão dele, a arma disparou. Corri também, e ele
continuava ali sentado, o olhar perdido, um filete de sangue na testa. A bala
fez um buraco redondíssimo na porta de vidro de uma estante.
Não demorou um segundo, nossa porta estava
coalhada de gente que ouviu o disparo. Logo, o padre Prudêncio, que fiscalizava
a vida de Deus e do mundo, adentrou o escritório, de batina marrom-escura e
alpercatas:
– Meu filho, por que
isso?
Papai recobrou a cor,
a dignidade e, com uma energia furibunda, botou pra correr o padre Prudêncio,
que antes da missa ia conferir se as mulheres estavam compostas, com véus sobre
os ombros e tudo mais, senão botava pra fora.
Na Sexta-Feira Santa,
ninguém podia dar um pio, todos os móveis e imagens eram cobertos com pano
escuro, as matracas batiam sem parar do meio-dia às 3 da tarde.
E a imagem de gesso do
Cristo crucificado? Bastava atravessar a rua para encontrá-la, deitada, o ano
inteiro, na sacristia.
Meus pais, graças a
Deus, não eram nada religiosos. Mas, durante boa parte da infância, me
assombrava a história da menina que virou sal, que vivia atrás da porta da
igreja porque ergeu a mão contra os pais.
Assim, por isso tudo,
foi bonito ver o padre enxerido sair com o rabo entre as pernas. Não levei nem
em consideração que ele me crismou, tendo como padrinho São Jorge e, como
representante do santo guerreiro, seu Elias Hage.
Nós, ainda sem
entender nada, ficamos com a Ismênia, que não dizia palavra, na janela do
quarto de meus pais, que dava para uma parreira. (Imagine, uvas em Santarém!)
Era a última vez que
ficávamos assim juntos. Quando a poeira baixou um pouco, a primeira providência
de minha mãe foi proibir, com implacável determinação, a produção e o consumo
de goiabada em nossa casa.
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