Ninguém vive sem uma
nova fronteira. Comecei a exercitar a saudável prática da abordagem, da paquera
compulsiva, seguir as meninas, levar ou tentar um lero, testar a lei das
probabilidades. Primeiro a esmo, depois fazendo uma seleção da espécie.
As mignonetes eram meu
alvo favorito. E acabei me fixando numa que saía do Colégio Moderno ali por
volta do meio-dia. Era outra Sônia, irmã de um craque do futebol de salão na
minha categoria, o Rolinha.
O sobrenome da família
Rolla não podiam casar com ninguém da família Chamma. Senão iam virar Chamma
Rolla. Também circulava outra história: uma paixão de Sônia morrera de meningite,
ela prometera a todos os santos que não ia namorar nunca mais, só não entrara
num convento por causa das súplicas da mãe.
De uniforme marrom e
branco, Sônia pegava religiosamente a rua Braz de Aguiar, ontem como hoje a
mais charmosa de todas, sob um túnel de mangueiras, das quais não raro se
desprendia uma manga que caía bem no cocoruto do cidadão civilizado ou então no
pára-brisa dos carros.
Em vez de segui-la, a
universidade livre de malandragem e medo me aconselhava a provocar, digamos, um
acaso. Assim, contornei o cemitério da Soledade, desativado havia décadas, cuja
heroína é Severa Romana, uma mulher que preferiu morrer a ceder aos instintos bestiais
de uma besta quadrada.
A idéia era dar de
cara com Sônia, dizer algo parecido com “você é a coisa mais bonita que eu já
vi na vida” (se você acha que não funciona, ainda não leu as memórias de
Groucho Marx) e tentar sustentar um papo. Fiz isso umas dez vezes, mas cadê o
maldito verbo?
Ela sentiu o drama.
Primeiro me brindou com o esboço de um sorriso. Depois veio um cordial “Tudo
bem?” Como tudo estava indo às mil maravilhas, dei um jeito de estragar tudo,
abandonei o script e perguntei no outro dia como ia o irmão dela, Rolinha.
Sônia nem sequer
respondeu. Seguiu em frente, abraçada aos seus livros, como a menina do
primeiro sutiã. Comecei meu calvário outra vez, na base do tudo ou nada. Acompanha-la
até a casa, não. Mas, se eu ficasse um quarteirão antes, ok.
Não acreditei, não
parei de falar um segundo, não reparei em nada que não fosse ela, até estender
a mão na despedida. Aí, tudo mudou de figura.
Sônia pegou a minha
mão, virou a palma, começou a observar detidamente um sinal bem no meio dela.
Olhava o sinal e olhava o meu rosto abespinhado. E tomou a iniciativa: se eu
quisesse, podia passar na casa dela a partir das 7 e meia da noite.
Saí dali exultante,
mas cabreiro. Não imaginava que um sinal pudesse ganhar uma garota, e logo a
minha miss mistério, de cabelos compridos até a cintura, a pele de porcelana,
um biscuit. A caminho de casa, conferia a minha mão e não conseguia ver
qualquer encanto nela.
Na casa dessa outra
Sônia, a Sônia de verdade, talvez no rastro do prestígio do sinal, já na
primeira noite pude me sentar na varanda do famoso Bolo de Noiva. Era uma casa
com esse aspecto, de um próspero comerciante, numa das esquinas da Praça
Batista Campos, perfeita para a prática intensiva do romance.
Também logo na
primeira noite pude ouvir os gracejos vindos de alguns carros em disparada:
– Larga a rola!!!
Ficávamos ali,
comportados e compenetrados, praticamente sem contato manual. Quer dizer: ela
passava a maior parte do tempo passando a mão no tal sinal.
Eu sei que você vai
dizer que é tudo mentira, que não pode ser. Mas um dia os olhos negros de Sônia
ficaram dilatados, fixos num ponto da varanda, as lágrimas rolando sem parar, o
corpo não se sacudia nem nada, era quase que uma visão plácida, tirando a
cascata que saía dos olhos dela.
Apavorado, perguntava
o que era, sem resposta. Demorava o quê? Uns cinco minutos, uma eternidade. Só
na terceira vez Sônia me contou que, alisando a palma da minha mão, conseguia
trazer o falecido namorado de volta, exatamente como tinha sido enterrado, de
paletó. O meu sinal era igualzinho ao dele.
Vixe! Desde Aladim e a
Lâmpada Maravilhosa não ouvia nada igual. Sem dúvida, um programa melhor que
ver televisão, que ainda não dominava os lares.
É nessas horas que desabam
todos os padrões para ter ciúmes de seres vivos. O que é que eu podia fazer
numa situação dessa? Nada, a não ser cumprimentar o prezado finado quando ele
baixava.
Isso lá no íntimo,
porque acho que perderia a namorada se o fizesse em voz alta: “Boa noite,
falecido, como vão as coisas no além? Dá pra tirar o terno lá em cima?”
Funcionou: essa
insólita convivência com o fantasminha camarada durou mais ou menos um mês. O
meu namoro com Sônia, quase um ano.
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