Pesquisar este blog

terça-feira, julho 11, 2017

Palmério Dória 6: Diaba verde


Papai tinha o dom de dar apelidos dos quais a pessoa jamais se livrava. Ele chamava a Ilka de Diabo Solto, esse apelido nunca vingou, mas a Ilka – filha do farmacêutico e caneógrafo Carlito – era isso.

Qualquer noção de mulher liberada, daquela categoria que uma antropóloga americana chama de vagina positiva, a mulher que comanda a foda, Ilka era o projeto dessa mulher. E nós éramos as cobaias dela.

Vendo-a ali, exercendo os dotes de pianista, num dos frequentes saraus que aconteciam na casa dela, entre a igreja matriz e a delegacia, ninguém poderia imaginar que, nas internas, fazia gato e sapato de gente.

Não admita concorrência. Não havia outra menina nas peças teatrais que produzia num dos inúmeros quartos do megafúndio que era a casa dela. Essas peças, com várias sessões, terminavam com um invariável beijo na boca. Todos nós éramos contemplados com um. Aprendemos com ela esse negócio de beijo de língua.

Mas o babaca aqui acreditava que era só comigo aquele negócio de mergulhar no rio, se encontrar no fundo, se beijar até perder a respiração, se separar e voltar à tona sem ninguém perceber.

Se houvesse algum navio ancorado ao largo, a gente nadava em bando até ele. Subíamos nele e nos exibíamos em saltos para os turistas. Éramos todos seres aquáticos. Ninguém sabia ao certo quando tinha aprendido a nadar. Não tínhamos o menor respeito pelas distâncias.

Cada um testava o próprio fôlego – para todos os efeitos, isso me salvou: os médicos diagnosticaram aos 5 anos que eu tinha “coração de boi”, que viveria no máximo até 11 anos, daí a extrema liberdade que me davam, já que eu estava precocemente condenado.

Medo mesmo, só tínhamos de arraia e candiru, o peixe-vampiro que pegava o fluxo da urina e entrava no pau ou no cu – nenhum de nós usava calção frouxo por isso. E de arraia – arre, égual!: certas madrugadas acordávamos com o grito terrível de um pescador ferrado por ela ali na frente.

Então, se pudesse apostar numa mulher que daria certo, que ia fazer e acontecer, que faria o diabo a quatro com os homens, jogaria todas as fichas em Ilka.

Como nem eu nem ninguém podia tê-la, tentei me apaixonar por uma certa Marisa, parecidíssima com ela. Vinha todos os domingos, de mãos dadas com a menina, para a matinê do Olímpia.
Um dia, para chamar-lhe a atenção, tomei-lhe a frente no hall do cinema, fiz de conta que subia a escada para o mezanino, pulei o corrimão, mas acabei me estabacando aos seus pés.

Os esguichos de sangue que saíam da minha boca borrifaram em cheio o vestido imaculadamente branco e engomado dela. Marisa ficou com ódio de mim. Eu fiquei com os dentes da frente rachados para sempre.

Reencontrei Ilka em circunstâncias trágicas: os dois irmãos dela, Domingos e Carlinhos, meus amigos de infância, foram mortos um após outro, no bairro de Campo Grande, no Rio.

Soube algum tempo depois e fui visitar a família no apartamento dela ao lado do Othon Palace, em Copacabana.

É mesmo desconcertante rever um grande amor. Assim à primeira visita, não tinha mudado nada, só melhorado a performance do Criador. Glamourosa, tinha pleno domínio de toda a numerosa família que circulava ali.

Seu Carlito procurava carregar sua cruz com extraordinário bom humor. Apontou para duas mocinhas num sofá e mandou:

– Esses garotos são uns apressados, vão embora e deixam essas viúvas fresquinhas.
 
Ilka mesma me contou. Fora dali, não era ninguém Tinha adquirido durante esses anos a tal síndrome do pânico. Não dava um passo na rua.

– Não sou mais aquela – lamentou.

Tomara que tenha voltado a ser.

Nenhum comentário: