Papai tinha o dom de
dar apelidos dos quais a pessoa jamais se livrava. Ele chamava a Ilka de Diabo
Solto, esse apelido nunca vingou, mas a Ilka – filha do farmacêutico e
caneógrafo Carlito – era isso.
Qualquer noção de
mulher liberada, daquela categoria que uma antropóloga americana chama de vagina
positiva, a mulher que comanda a foda, Ilka era o projeto dessa mulher. E nós
éramos as cobaias dela.
Vendo-a ali, exercendo
os dotes de pianista, num dos frequentes saraus que aconteciam na casa dela,
entre a igreja matriz e a delegacia, ninguém poderia imaginar que, nas
internas, fazia gato e sapato de gente.
Não admita
concorrência. Não havia outra menina nas peças teatrais que produzia num dos inúmeros
quartos do megafúndio que era a casa dela. Essas peças, com várias sessões,
terminavam com um invariável beijo na boca. Todos nós éramos contemplados com
um. Aprendemos com ela esse negócio de beijo de língua.
Mas o babaca aqui
acreditava que era só comigo aquele negócio de mergulhar no rio, se encontrar
no fundo, se beijar até perder a respiração, se separar e voltar à tona sem
ninguém perceber.
Se houvesse algum
navio ancorado ao largo, a gente nadava em bando até ele. Subíamos nele e nos
exibíamos em saltos para os turistas. Éramos todos seres aquáticos. Ninguém
sabia ao certo quando tinha aprendido a nadar. Não tínhamos o menor respeito
pelas distâncias.
Cada um testava o
próprio fôlego – para todos os efeitos, isso me salvou: os médicos
diagnosticaram aos 5 anos que eu tinha “coração de boi”, que viveria no máximo
até 11 anos, daí a extrema liberdade que me davam, já que eu estava
precocemente condenado.
Medo mesmo, só
tínhamos de arraia e candiru, o peixe-vampiro que pegava o fluxo da urina e
entrava no pau ou no cu – nenhum de nós usava calção frouxo por isso. E de
arraia – arre, égual!: certas madrugadas acordávamos com o grito terrível de um
pescador ferrado por ela ali na frente.
Então, se pudesse
apostar numa mulher que daria certo, que ia fazer e acontecer, que faria o
diabo a quatro com os homens, jogaria todas as fichas em Ilka.
Como nem eu nem
ninguém podia tê-la, tentei me apaixonar por uma certa Marisa, parecidíssima
com ela. Vinha todos os domingos, de mãos dadas com a menina, para a matinê do
Olímpia.
Um dia, para
chamar-lhe a atenção, tomei-lhe a frente no hall do cinema, fiz de conta que
subia a escada para o mezanino, pulei o corrimão, mas acabei me estabacando aos
seus pés.
Os esguichos de sangue
que saíam da minha boca borrifaram em cheio o vestido imaculadamente branco e
engomado dela. Marisa ficou com ódio de mim. Eu fiquei com os dentes da frente
rachados para sempre.
Reencontrei Ilka em
circunstâncias trágicas: os dois irmãos dela, Domingos e Carlinhos, meus amigos
de infância, foram mortos um após outro, no bairro de Campo Grande, no Rio.
Soube algum tempo
depois e fui visitar a família no apartamento dela ao lado do Othon Palace, em
Copacabana.
É mesmo desconcertante
rever um grande amor. Assim à primeira visita, não tinha mudado nada, só melhorado
a performance do Criador. Glamourosa, tinha pleno domínio de toda a numerosa
família que circulava ali.
Seu Carlito procurava
carregar sua cruz com extraordinário bom humor. Apontou para duas mocinhas num
sofá e mandou:
– Esses garotos são
uns apressados, vão embora e deixam essas viúvas fresquinhas.
Ilka mesma me contou.
Fora dali, não era ninguém Tinha adquirido durante esses anos a tal síndrome do
pânico. Não dava um passo na rua.
– Não sou mais aquela
– lamentou.
Tomara que tenha
voltado a ser.
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