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sábado, julho 08, 2017

Palmério Dória 2: Folias aquáticas


Na verdade, toda essa história começa em Santarém. Um tempo depois dos 7 a 0, papai, funcionário público, foi parar ali com minha mãe, Nazaré, e meus irmãos, Valdemar e Betina, para chefiar a delegacia do Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Marítimos. Logo fez amizade com seu Elias Hage, um libanês rotundo e bonachão, a calma em pessoa, que ficou milionário com o pau-rosa.

Eu não estava no programa. Mamãe levou um gol por baixo das pernas, cujo resultado saiu dia 9 de março – mesma data em que a frota de Cabral saiu do porto de Palos para descobrir o Brasil – de 1949. Mas foi um bom pretexto para o papai encher a cara durante três dias.

Ainda na primeiríssima infância, fui levado por um toró da porta de casa até uma boca-de-lobo, cujo ferro segurei com as duas mãos com uma energia que tirei sei lá de onde – a lembrança mais distante que tenho. Se elas cedessem, um presuntinho ia aparecer uns 300 metros adiante na margem do Tapajós, verde-azul, o rio mais bonito do mundo, segundo os habitantes de Santarém.

Fui resgatado de lá por uma figura popular, que andava sempre com uma touca de vôo usada pelos pilotos da Primeira Guerra Mundial – quando tive idade para agradecer, ele já tinha morrido. Talvez tenha sido minha ligação mais longínqua com o futebol – segura que (a vida) é sua!!!

De resto, não dava a menor bola, embora ele estivesse presente o tempo todo. De vez em quando a família inteira ia ver papai, aposentado do gol, apitar os jogos em Santarém, principalmente o clássico São Francisco e São Raimundo, e no Baixo Amazonas, para onde íamos de motor.

Me lembro especialmente de um soco que ele levou de um dos contendores no meio da cara, durante uma partida em Monte Alegre. Parece que o jogo acabou naquele momento, com um corte no supercílio do árbitro, que sangrava abundantemente, o lenço na mão de mamãe um vermelho só, do outro lado da cerca que separava a arquibancada mambembe do campo.

Me lembro ainda mais especialmente da minha farra nas piscinas de águas sulfurosas, enxofre puro, cercadas de montes alegres, e da revoada de garças pousando na “cidade baixa” do imenso areal que era a cidade.

As garças quebravam a monotonia desse verde vago mundo. De certos pontos do rio Amazonas nem dava pra ver a margem. Quando dava, as garças se destacavam contra miríades de tons de verde. Por isso era tão espetacular, nas idas e vindas para Belém, a passagem no estreito de Breves, antes da ilha do Marajó – ou ilhas do Marajó: 2.000 –, tão estreito que parecia não ter retorno. A monotonia era fora.

Dentro dos motores, de todos os tipos e tamanhos, se fazia de tudo. Nada a ver com o tempo dos aviões, chato e sem sentido algum. A gente brincava, os adultos papeavam, os cozinheiros cozinhavam, os namorados namoravam, os dorminhocos tiravam uma soneca nas redes e nos camarotes.

De repente, de um ponto da mata, minúsculas canoas, feitas de troncos de árvores, vinham em nossa direção quase sempre no ritmo das remadas de um único caboclo sentado na popa, a proa levantada. O motor passava, eles ficavam balançando no rastro das ondas ou catando na água os pedaços de pão que a gente jogava.

Outras vezes passávamos por uma numerosa família completamente imóvel, em escadinha, na frente das casas de madeira acinzentada, apodrecidas pela umidade, ou só com a cobertura de palha de palmeira e sustentadas por troncos grossos, completamente devassadas.

Um retrato pronto e acabado do que o pessoal chama hoje de Povos da Floresta, pra Pedro Martinelli nenhum botar defeito. 

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