Por Ivan Lessa
Triiim. O telefone lá em casa. “Alô”, respondi eu, em
português, evitando o hello, para não
parecer pretensioso caso seja um amigo íntimo que eu não vejo há mais de dez
anos. Mas era, coisa rara, um inglês. Não queria falar comigo mas com minha
filha.
Expliquei que estava no banho, se não queria deixar recado.
Era para eu dizer que fora o Nick quem telefonara, que ligaria dentro de meia
hora. Trocamos as cortesias de praxe e nos despedimos. Mentalmente, assinalei
com lápis vermelho o dia e a hora do telefonema.
Aí estava: o primeiro telefonema de um homem para minha
filha de 14 anos. Um homem chamado Nick. Que deve ter pelo menos 15 anos. Que
ficou sabendo que minha filha estava no banho. Que ligaria mais tarde e eu
ficaria sentado na sala enquanto minha filha riria – de que, meu Deus? –, riria
no quarto, na extensão, com a porta fechada.
E eu sentado na sala subitamente envelhecido em dez anos
assistindo ao noticiário na televisão. O mundo inteiro acendendo velinhas e
pedindo para eu soprar e fazer um pedido.
Peço que o Nick seja um bom marido, e sopro a primeira
velinha.
Peço que – olha, não é por nada , não –, mas que tenha
alguns recursos e seja trabalhador, e sopro a segunda velinha.
Peço que tenham paciência com as aflições do amor, e sopro a
terceira velinha.
Peço que desculpem o fraque alugado e meio apertado demais
no dia do casamento, e sopro a quarta velinha.
Peço que me visitem no asilo pelo menos uma vez por mês aos
domingos, e sopro a quinta velinha.
Peço que leiam Machado de Assis mesmo em tradução para o
inglês, e sopro a sexta velinha.
Peço que deixem segurar no colo por uns poucos minutos o
neném pois eu tenho alguma experiência, e sopro a sétima velinha.
Peço que me perdoem o sotaque e o papo chato sobre os filmes
antigos e que não levem a mal o disco de Bing Crosby que eu insisto em botar na
vitrola e quero que eles reparem na letra, e sopro a oitava velinha.
Fiquei lá, soprando. Firme. Velho mas firme. Tomando muito
cuidado para não quebrar nada nem ser quebrado.
O noticiário passou para um item sobre os anos de governo da
Sra. Thatcher e as mudanças ocasionadas pela gestão. Eu me lembro que em 3 de
maio de 1979 minha filha tinha quatro anos e não estou certo se ainda vigorava
o carrinho que eu empurrava, quando a distância a percorrer era maiorzinha um
pouco ou fazia muito frito.
Mas ela era muito pequena e eu era quase do mesmo tamanho de
hoje e a Grã-Bretanha também tinha um jeitão diferente. Ou será que é impressão
minha? Tudo é impressão. Minha, sua, nossa. Toda impressão deixa marcas.
Chama-se de História, o catalogar ordenado de cicatrizes. E contusões.
Nos anos Thatcher, os sindicatos levaram uma traulitada e
minha filha aprendeu a esquiar na neve. Nos anos Thatcher, a Argentina perdeu
uma guerra e minha filha ganhou um livro de prêmio pela melhor composição.
Nos anos Thatcher, houve privatização de diversos serviços de
utilidade pública, inclusive da Cia. Telefônica, o que deve ter tornado mais
fácil para Nick telefonar para minha filha e convidá-la para um cinema no
domingo.
Cá estou enredando minha história particular – ainda não
privatizada a não ser por mim próprio –, enredando minha história destas ilhas.
Mas foi a parte que me coube no calendário.
História, concluo eu, é tudo aquilo que se passou em nossa
casa. Mal sabendo o que em minha casa se passou, como ousar relatar, resumir as
histórias das casas de não-sei-quantos-milhões de habitantes.
Quanto ao futuro. Bem, só posso adiantar que minha filha
recusou o programa com o Nick. Agora, é esperar o que vem por aí: George,
James, Kevin, Clive, Tom, Bob etc. etc. etc.
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