Por José Nêumanne
O excelentíssimo senhor deputado federal Vicente Cândido
(PT-SP) acaba de inventar uma nova modalidade no Direito Penal de todos os
tempos, desde o Código de Hamurábi, e em todos os lugares: um tipo de crime que
compensa.
Com seu estilo moderado de finório, o “nobre” (argh!) parlamentar propõe a “emenda Lula”
para livrar seu amado chefinho, Luiz Inácio Lula da Silva, das agruras do
cumprimento das penas às quais acaba de ser condenado pelo juiz federal Sergio
Moro, da 13.ª Vara Federal Criminal de Curitiba (PR).
No sábado passado, a Coluna do Estadão, editada por Marcelo
de Moraes e Andreza Matais, da Sucursal do Estado em Brasília, contou que, “sem
alarde, o deputado Vicente Cândido (PT-SP) incluiu no seu relatório na Comissão
de Reforma Política artigo que, se aprovado, vai impedir a partir da eleição de
2018 a prisão de candidatos até oito meses antes da eleição”, em benefício de
Lula. Dá pra acreditar? Claro que dá.
A notícia, destacada em manchete na primeira página do
jornal, revelou que, sem defesa aceitável para enfrentar as provas enfileiradas
contra ele, o condenado só encontra salvação em mudanças nas leis. E tais penas
ainda poderão ser ampliadas em mais quatro processos penais, restando-lhe,
assim, contar com sua bancada pessoal no Congresso para enganar os trouxas e
mudar os cânones eleitorais existentes, nem que para isso tenha de pisar no
Código Penal vigente. Não é mesmo de cabo de esquadra?
Essa reforma, conforme a coluna alertou, altera o artigo 236
do Código Eleitoral, que proíbe a prisão de candidatos a cargos eletivos 15
dias antes do pleito. É jocosa e justissimamente chamada de “emenda Lula”. Por
um motivo simples: o pretenso candidato à sucessão presidencial foi condenado
pelo juiz Sergio Moro a 9 anos e 6 meses de cadeia.
Se o Tribunal Regional Federal da 4.ª Região (TRF4), de
Porto Alegre (RS), mantiver a sentença, ele poderia beneficiar-se da nova regra
eleitoral. Como, de resto, qualquer criminoso comum que conseguir uma legenda
para se candidatar a qualquer posto por qualquer partido. E, se um poderoso
traficante resolver comprar uma legenda para candidatar-se?
Vicente Cândido admitiu aos colunistas que a nova regra
beneficiaria Lula e foi pensada para “blindar” não só ele, mas políticos
investigados: “Lula também, como qualquer outro. É nossa arma contra esse
período de judicialização da política”, pontificou. O líder da bancada do PT na
Câmara dos Deputados, Carlos Zarattini (SP), também apelou para essa “cândida”
informação: a emenda beneficia o chefinho, mas não só ele.
Em matéria de safadeza, esta foi a maior de que já tomei
conhecimento na vida. Lido com política desde a infância, pois meu pai foi
candidato a vice-prefeito de Uiraúna (PB), berço de Luiza Erundina (PSOL-SP),
quando eu tinha a idade que hoje tem meu neto mais velho: 14 anos. Ou seja, já
lá se vão 52 anos.
É mesmo difícil de acreditar, mas aqueles que se dizem
nossos representantes perderam o juízo e o pudor de vez. Resta ver se os
parlamentares dos outros partidos acompanharão o relator cínico nessa jornada
em direção à total falta de vergonha. O Estado, que deu o furo, e os outros
jornais já registraram a reação de vários parlamentares em completo desacordo.
É o mínimo que deles se espera. Mas sabe-se lá o que ainda pode vir de notícia
ruim do Congresso.
Em meio século de jornalismo, o autor destas linhas já
deveria ter-se habituado à malandragem que comanda os atos dos políticos. Mas
parece que a capacidade deles de assustar é mais ampla do que o limite do
espanto do cidadão mais experimentado em convívio com truques do gênero.
O relator da reforma política, que já andou propondo outros
crimes contra a democracia, tais como a lista fechada e o Fundo Partidário
bilionário para sustentar campanhas eleitorais que têm patrocinado a ampla
farra da corrupção, trai até o sentido etimológico da palavra que define quem
disputa um cargo político.
Candidato vem de candidus
– forma nominativa do termo que os romanos usavam para definir alvo e, por
conseguinte, limpo, cândido. Opa, espera ainda, olha aí: o sobrenome do autor
da proposta infame. Nunca ninguém foi tão pouco cândido quanto Vicente Cândido.
O Dicionário Houaiss lembra que este proparoxítono, usado
até como marca comercial de água sanitária, permite a sinonímia de ingênuo e
tolo e a antinomia de devasso. Em inglês, a palavra candid, com a mesma raiz latina da nossa e da francesa candide, que dá nome ao personagem da
sátira de Voltaire, é usada comumente no sentido de franco.
Talvez seja o caso de designar pelo antônimo o beneficiário
da emenda criminosa de Cândido: seu amado chefinho Lula. É possível começar
pelo pretexto usado pelo relator, que de ingênuo nada tem, para justificar seu
criminoso intento: pôr fim à judicialização da política.
A verdadeira intenção é a de permitir que o ex-presidente
Luiz Inácio Lula da Silva continue usando a única arma que lhe resta para
escapar: refugiar-se na política para fugir da Justiça e, em consequência, da
prisão. Ou seja, algo que pode ser definido como “politização da Justiça”.
O que o Cândido sem candura alguma propõe, além do mais, é
manter intacto o mito do herói popular, que renega os fatos da biografia real.
O dirigente sindical que vendia greves, denunciado por Emílio Odebrecht em
delação premiada da qual o empreiteiro só se beneficiará se acompanhar a
informação de provas, é venerado pelos acólitos Cândido e Zarattini como o
redentor da proletariado espoliado.
O dignitário da esquerda, que contestava ao mesmo tempo a
herança de Vargas e a ignomínia da ditadura militar, era, na verdade,
informante da polícia, que, segundo Romeu Tuma Jr., em Assassinato de Reputações – um Crime de Estado (Editora Topbooks,
Rio de Janeiro, 2013), trabalhou, com o codinome Barba para o pai do autor,
delegado Romeu Tuma, à época das greves dos metalúrgicos, pelas quais se
notabilizou, quando o policial dirigia o Dops (polícia política) do Estado de
São Paulo.
Disso não há provas, diria a presidente nacional do Partido
dos Trabalhadores (PT), senadora Gleisi Hoffmann (PR), que acusou o juiz, que
também proibiu seu líder máximo de ocupar cargos públicos por sete anos, de
tê-lo feito para atender ao clamor popular. Ao fazê-lo, a parlamentar que
comandou o ominoso assalto à Mesa do Senado, transformada em laje de
churrascada, na votação da reforma trabalhista (aprovada por 50 votos a 26, um
“capote”), reconheceu a verdadeira natureza da tragédia que se abate sobre o
chefão e seus chefiados: o clamor popular contra.
O prestígio do dedo-duro que se fingia de líder grevista e
do informante que fazia o jogo duplo como combatente é mantido intacto para os
30% de seus seguidores que as pesquisas identificam. Apesar de Odebrecht e
Tuminha nunca terem sido sequer contestados, quanto mais processados… O número
é insuficiente para elegê-lo numa disputa majoritária de dois turnos.
Devotos como Frei Betto ainda alimentam a ilusão de que a
condenação por corrupção passiva e lavagem de dinheiro pode aumentar sua aura
de protetor dos oprimidos. Mas os altíssimos índices de rejeição, que variam,
de acordo com o instituto, de 45% a 60%, foram confirmados tanto na derrota
acachapante nas eleições municipais no ano passado quanto nos vexames passados
no Congresso, nos fiascos do impeachment de Dilma e dos projetos apoiados por
Eduardo Cunha e, também, por Temer, depois dos quais não restam à esquerda nem
sobejos.
A pecha histórica de traíra e delator e a sentença de corrupto
têm esvaziado as manifestações de solidariedade ao condenado. Cada vez menos
gente cai no papo furado do descarado herói desmascarado. Mas seus aliados, na
certa por saberem que não têm chance de sobreviver no bem-bom da política senão
à sua sombra, continuam blefando para manter seu ídolo de barro intacto.
A perspectiva de um malogro eleitoral em outubro de 2018,
contudo, não os favorece, seja por ameaçar o foro privilegiado de que ainda
gozam, seja por manter os menos convictos infensos às lorotas que podem
comprometer as próprias campanhas.
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