Nem tudo era alegria.
Outra morte, a de Craveiro Lopes pode entrar perfeitamente num Campeonato
Nacional de Azar. Não, não era o presidente português. Era o papagaio da
família, escroto e obsceno como o das piadas.
Os marítimos, que
traziam na cabeça, quase sempre descalços, tartarugas imensas de presente para
meu pai, paravam para vê-lo, dando o show habitual na varanda nos fundos:
“Craveiro Lopes quer almoçar”.
Um dia, ele não
apareceu para o almoço e apareceu em frangalhos nas mãos de um vizinho, que nem
precisou bater – a porta estava sempre escancarada. Tinha sido atropelado pelo
único carro da cidade – apesar de estarmos bem perto de Fordlândia –, mais uma
criação do império Henry Ford, herói do capitalismo, plantada no coração da
Amazônia para fornecer goma elástica aos americanos, mas não colou.
Craveiro Lopes morreu,
mas ficou a lenda. A morte deletéria teria sido encenada: era tão valioso, tão
cobiçado, que o tal vizinho o roubou, pegou outro papagaio e armou a cena do
atropelamento. O comprador seria um regatão – o mascate dos rios – que atracava
o barco no cais da cidade.
O fato é que passei um
bom tempo atento a todos os papagaios que via nas embarcações ali atracadas.
Com alguns chegava a levar um papo, nenhum com a fluência de Craveiro Lopes. De
vez em quando, alguém aparecia dizendo que daquela vez era. Nunca era.
No meio dessa
tragédia, veio uma compensação à altura. Um irmão de seu Elias Hage, José, que
precisou voltar às pressas para Belém, me presenteou com uma vitrola e uma
pilha de discos 78 rotações. Eu botava um monte deles para tocar. Um após
outro, caíam pesadamente no prato.
Para mamãe, aquele
mamute na entrada não passava de um trambolho, que só atrapalhava suas faxinas,
uma formiguinha infatigável. Para mim, era um brinquedo extraordinário. O
libanês era um sofisticado colecionador de jazz. Mas eu lá sabia o que era
jazz, blue note, be-bop, toda essa sonora volta por cima da cultura negra?
A cidade tinha só um
serviço de alto-falante, no alto de um prédio chamado Castelo, armazém de secos
e molhados na ponta do cotovelo que adentrava o rio. Santarém inteira ficava na
escuta exclusivamente do que o serviço de alto-falante despejava diariamente de
Luís Gonzaga a Jackson do Pandeiro, passando por Nelson Gonçalves e Núbia Lafaiete,
das 7 da matina às 6 da tarde, quando encerrava suas transmissões com a ave-maria.
Enquanto isso, eu
bancava o DJ, ouvia Charlie Parker, John Coltrane, Thelonious Monk, Miles
Davis, Count Basie, Louis Armstrong, Dizzy Gilespie, Aretha Franklin, Ella
Fitzgerald, Billie Holiday, entre outros e outras.
Só vim saber direito
quem era quem aí pelos 18 anos, já morando no Rio de Janeiro, nas sessões de
jazz que o jornalista paraense José Gorayeb promovia em sua casa no bairro de
São Clemente, onde me hospedei por um bom tempo.
Eram sons
absolutamente familiares. Algumas músicas eu acompanhava assobiando, para
surpresa da roda, formada por outros jornalistas, de formação jazzística e
comunística, como Carlos Jurandir, George Cabral e José Edson Gomes. Depois eu
ia dar uma conferida nos long-plays, lia uma ou outra coisa, e passava também a
cagar a minha goma.
O rádio existia, sim.
Mas na figuraça de Zeca BBC, dublê de fofoqueiro e técnico que ia de casa em
casa, trajando brim-coringa, consertando ou ajustando um aparelho aqui e outro
ali, parece que sem muito sucesso. Diziam à boca nada pequena que Zeca BBC
tinha uma sólida reputação de não dar conta do recado.
Todo mundo tinha um
problema com eles, os malditos rádios. A música que predominava era a Estática
Número 5, de Chopin. E a língua arrevesada dos gringos da BBC – daí o apelido –
e da Voz da América. Sem contar as porradas que os prezados ouvintes davam nos
aparelhos, quando perdiam a paciência.
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