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sábado, julho 08, 2017

Palmério Dória 4: Influência do Jazz


Nem tudo era alegria. Outra morte, a de Craveiro Lopes pode entrar perfeitamente num Campeonato Nacional de Azar. Não, não era o presidente português. Era o papagaio da família, escroto e obsceno como o das piadas.

Os marítimos, que traziam na cabeça, quase sempre descalços, tartarugas imensas de presente para meu pai, paravam para vê-lo, dando o show habitual na varanda nos fundos: “Craveiro Lopes quer almoçar”.

Um dia, ele não apareceu para o almoço e apareceu em frangalhos nas mãos de um vizinho, que nem precisou bater – a porta estava sempre escancarada. Tinha sido atropelado pelo único carro da cidade – apesar de estarmos bem perto de Fordlândia –, mais uma criação do império Henry Ford, herói do capitalismo, plantada no coração da Amazônia para fornecer goma elástica aos americanos, mas não colou.

Craveiro Lopes morreu, mas ficou a lenda. A morte deletéria teria sido encenada: era tão valioso, tão cobiçado, que o tal vizinho o roubou, pegou outro papagaio e armou a cena do atropelamento. O comprador seria um regatão – o mascate dos rios – que atracava o barco no cais da cidade.

O fato é que passei um bom tempo atento a todos os papagaios que via nas embarcações ali atracadas. Com alguns chegava a levar um papo, nenhum com a fluência de Craveiro Lopes. De vez em quando, alguém aparecia dizendo que daquela vez era. Nunca era.

No meio dessa tragédia, veio uma compensação à altura. Um irmão de seu Elias Hage, José, que precisou voltar às pressas para Belém, me presenteou com uma vitrola e uma pilha de discos 78 rotações. Eu botava um monte deles para tocar. Um após outro, caíam pesadamente no prato.

Para mamãe, aquele mamute na entrada não passava de um trambolho, que só atrapalhava suas faxinas, uma formiguinha infatigável. Para mim, era um brinquedo extraordinário. O libanês era um sofisticado colecionador de jazz. Mas eu lá sabia o que era jazz, blue note, be-bop, toda essa sonora volta por cima da cultura negra?

A cidade tinha só um serviço de alto-falante, no alto de um prédio chamado Castelo, armazém de secos e molhados na ponta do cotovelo que adentrava o rio. Santarém inteira ficava na escuta exclusivamente do que o serviço de alto-falante despejava diariamente de Luís Gonzaga a Jackson do Pandeiro, passando por Nelson Gonçalves e Núbia Lafaiete, das 7 da matina às 6 da tarde, quando encerrava suas transmissões com a ave-maria.

Enquanto isso, eu bancava o DJ, ouvia Charlie Parker, John Coltrane, Thelonious Monk, Miles Davis, Count Basie, Louis Armstrong, Dizzy Gilespie, Aretha Franklin, Ella Fitzgerald, Billie Holiday, entre outros e outras.
 
Só vim saber direito quem era quem aí pelos 18 anos, já morando no Rio de Janeiro, nas sessões de jazz que o jornalista paraense José Gorayeb promovia em sua casa no bairro de São Clemente, onde me hospedei por um bom tempo.

Eram sons absolutamente familiares. Algumas músicas eu acompanhava assobiando, para surpresa da roda, formada por outros jornalistas, de formação jazzística e comunística, como Carlos Jurandir, George Cabral e José Edson Gomes. Depois eu ia dar uma conferida nos long-plays, lia uma ou outra coisa, e passava também a cagar a minha goma.
 
O rádio existia, sim. Mas na figuraça de Zeca BBC, dublê de fofoqueiro e técnico que ia de casa em casa, trajando brim-coringa, consertando ou ajustando um aparelho aqui e outro ali, parece que sem muito sucesso. Diziam à boca nada pequena que Zeca BBC tinha uma sólida reputação de não dar conta do recado.

Todo mundo tinha um problema com eles, os malditos rádios. A música que predominava era a Estática Número 5, de Chopin. E a língua arrevesada dos gringos da BBC – daí o apelido – e da Voz da América. Sem contar as porradas que os prezados ouvintes davam nos aparelhos, quando perdiam a paciência.

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