Mas chegou o Castilho,
o Adalberto cismou em me tirar do Remo e – muito mais importante – o destino
botou a Lúcia na minha frente. Por ironia, a Lúcia era filha do brigadeiro
comandante 1ª Zona Aérea, Joléo da Veiga Cabral, na fase em que a temperatura
política começou a esquentar.
A novidade dançante
agora era a Maloca, que era isso mesmo, uma Maloca na Praça Kennedy, como
aquela do ex-governador Aurélio do Carmo e do Jean-Paul Sartre, só que
maiorzinha, inclusive do mesmo dono. E a Lúcia estava ali, de minissaia.
Tirei-a para dançar, e ela já colou o rosto e tudo mais. Dançou assim com os
outros. Claro que era um jeito carioca de ser.
A partir dali, só
matava o tempo para encontrá-la de novo. Se vale filosofar (em espanhol),
Ortega y Gasset dizia que o homem nunca é fiel a uma mulher, e sim a um tipo de
mulher.
E Lúcia era o meu tipo
completo: também mignon, cabelos descendo em ondas brilhantes pelos ombros,
boca generosa, olhos brilhantes, um nariz abusado que, se eu fosse o Pitanguy,
usaria como molde, e um discreto charme da burguesia.
Pequena notável com
peitão de gringa, havia alguns obstáculos: ela era três anos mais velha e não
estava nem aí.
Entrar no QG dela foi
a parte mais fácil. Tornei-me amigo de um garoto íntimo da família, também
filho de milico carioca, que tocava um violão bárbaro.
Como gostava da minha
página na Província, apresentou-me como jornalista e jogador numa seresta na
residência oficial do comandante, um luxuoso palacete na rua Ruy Barbosa. Nem a
súbita visão de Maria Elisa, a irmã de Lúcia, ainda mais velha e tão linda
quanto, me tirou Lúcia da cabeça.
Pintora, Maria Elisa
vibrou nessa época com a passagem por Belém de uma trupe liderada pelos
artistas plásticos Hélio Oiticica e Cláudio Tozzi e pelos irmãos Augusto e
Haroldo de Campos, que armaram suas tendas em plena Praça da República, onde
você também podia bater um papo com o físico Mário Schemberg.
De quebra, Zé Celso
Martinez levou O Rei da Vela ali em
frente, na sede da Assembléia Paraense, o clube da elite paraense. Maria Elisa
só lamentava que “alguns fossem comunistas”.
Passei uma camada de
óleo de peroba na cara-de-pau, e todo dia ligava para ela do meu QG, a padaria
Princesa das Flores, pois não tinha telefone em casa e contava com a
inestimável colaboração de seu Rodrigues, um lusitano do peito.
Entre uma e outra
patada no negro gato que não largava do meu pé, no cubículo do telefone,
aspirando o delicado aroma das peças de bacalhau que forravam o recinto, ia
sabendo cada vez mais de minha heroína.
Lúcia era secretária
(trilíngue) do general da reserva João Batista Tubino, presidente da Jari,
empreendimento do bilionário americano Daniel Ludwig, que começava a montar no
Pará um império equivalente à metade da Holanda, nas margens do rio Jari –
pretendia bater todos os recordes mundiais de floresta plantada e plantio de
arroz; para atingir essas metas, anos depois importou uma fantástica fábrica de
celulose, que veio flutuando do Japão.
Não sei se a Lúcia
chegou a trabalhar ali com o major reformado Heitor Aquino Ferreira, do Serviço
Nacional de Informações, contratado para chefiar o escritório da Jari em Belém,
esse mesmo que entregou as gravações de Geisel para o jornalista Elio Gaspari.
Como chefe de
escritório, ele era um bom pit-bull. No começo dos anos 70 tentou impedir que
uma equipe da revista Realidade, da qual eu fazia parte, chegasse no portão
dele.
Primeiro, lá no
escritório, negou educadamente que Daniel Ludwig estivesse chegando pela Panam.
Quando viu a gente no aeroporto de Val-de-Cans, esperando o excêntrico
bilionário, que havia um quarto de século não dava entrevista, partiu para a ameaça
física:
– Se vocês não forem
embora, quebro a tua cara – disse, quase me pegando pelo colarinho.
Na revista saiu uma
versão mais amena dessa ameaça, pois não era um tempo bom para plantação de
facécias, como diz o Millôr.
Mas fizemos (eu,
Sérgio Buarque e Raimundo Rodrigues Pereira) uma festa inesperada para o
suposto inspirador do Tio Patinhas, irritado no estacionamento do aeroporto de
Vale-de-Cans:
“The journalists are attacking me again!”
Evidente que a Lúcia
sonhava mais alto. No caso, um tenente-aviador galã com mais de 1 metro e 90,
que rachava os corações das meninas de Belém. Mas o brigadeiro lançou um míssil
contra a fuselagem do jovem oficial, cortando também as asas da filha.
Pobre brigadeiro: não
passava pela cabeça dele que tudo podia ser bem pior. Lúcia me tornou um
instrumento da vingança dela. Só isso pode explicar o súbito interesse por mim
naquelas serestas. Desde então, aprovo qualquer ação subversiva de filhas
contra os pais.
Daqui a pouco, agente
estava de mãos dadas, daqui a pouco, aos beijos. No início no mais puro
enruste, depois escancarados. Ao deparar com a gente aos amassos na varanda,
por uns poucos momentos inquietantes, o brigadeiro deve ter pensado em recorrer
a um dos atos institucionais, não para cassar, mas para capar.
De qualquer forma,
pouco a pouco passei a figurar na programação normal, com salvo-conduto para
circular com a Lúcia em todos os lugares, inclusive no Clube dos Oficias da
Aeronáutica, na estrada da Maracangalha, em cuja piscina brincávamos de pesca
submarina.
Quando ela trocou o
recatado maiô verde e preto por um biquíni – lançado em 1946, só chegou pra
valer em Belém no meio dos anos 60 –, fomos para a praia do Outeiro, para ela
pegar uma cor na barriga.
Ali, debaixo da sombra
de uma árvore anã, durante a troca de carícias, Lúcia teve um estremecimento
tão intenso que, por um segundo, pensei que estivesse se sentindo mal.
Nunca me acostumei com
o lance de ir ao cinema em carro oficial, com duas bandeirolas tremulando, uma do
Brasil, outra do Pará, no capô do Aero-Willys Itamaraty preto. O ridículo tinha
limites.
Sempre dava uma
desculpa para encontrar o pessoal por lá. Mas o céu de brigadeiro um dia
desabou sobre as nossas cabeças.
Estávamos numa fase
bem tórrida do romance. A gente já se permitia ensaios de avançar o sinal,
Lúcio com a minissaia levantada, sem tirar a calcinha. Mas o brigadeiro chegou
na calada da madrugada, viu a cena a distância, e veio espumando.
Ele fechou a mão no
meu cotovelo como se fosse um gancho, e conduziu-me para a frente, para a
esquerda, a caminho da entrada principal, repetindo com os dentes cerrados:
– Você traiu a minha
confiança.
Eu também repetia, com
a mente toldada, patético:
– Não é nada disso que
o senhor está pensando...
No portão, vigiado por
dois soldados na guarita, só poupou-me do clássico pontapé na bunda.
No outro dia, quando
cheguei no vestiário do Paysandu, para um dia comum de treino, fui recebido
pela canalha com calorosos aplausos.
Um daqueles guardinhas
era meu colega de clube. Como não era baú, deu com a língua nos dentes,
espalhando no clube o que tinha e – principalmente – o que não tinha
acontecido.
Para todos os efeitos,
eu tinha comido a filha do brigadeiro e tinha sido apanhado por ele no ato.
Qualquer tentativa de
desmentir a história me colocava na insustentável condição de gentleman, coisa
que só o Jorginho Guinle era.
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