No templo desses
bailes, o Bancrévea, dois conjuntos musicais dividiam Belém: o do Alberto Motta
e o do Lélio. Aliás, em Belém é tudo assim: Paysandu ou Remo. Quem não é Remo
ou Paysandu diz que torce pela Tuna, da colônia portuguesa. A Tuna dos bailecos
era o Orlando Pereira.
O Alberto Motta
mandava no solovox, Lélio no violino e Orlando Pereira na guitarra. Todos
mimetizavam dois sucessos cariocas e, portanto, nacionais: Waldir Calmon, da
boate Arpége, e Djalma Ferreira, da boate Drink.
Arnaldo Henriques,
crooner do Alberto Motta, por exemplo, era papel-carbono do Miltinho, do Djalma
Ferreira. Mas inúmeros casais se formaram ouvindo Arnaldo Henriques:
Era aquele cheiro de
saudade
Que me traz você a
cada instante,
Folhas de saudade
soltas pelo chão,
É o outono enfim no
coração,
E talvez que é cheiro
de saudade,
Trago o peito tão
carregadinho,
Sofro de verdade,
Fruto da saudade
Sem o teu carinho...
Havia lugares mais
acanhados, mas não menos empolgantes, como o Automóvel Club do Pará, no topo do
edifício Palácio do Rádio, onde dancei ao som de Jorge Ben ao vivo, em fase de
lançamento diria mundial, metido no meu indefectível terninho verde – Momo,
primeiro e único.
Ah, as noites de Top Set! Todos nós esperávamos ansiosamente
o domingo no Automóvel Club!
Para ficar com o corpo
mais leve, treinava em casa com a minha irmã, mas meu professor era mesmo o meu
irmão, craque em danças de salão, que costumava abrir aqueles bailes com a
maior desenvoltura.
Mas quem era o grande
craque da dança de salão: Valdemar ou Dilermando?
E, com os Beatles na
área, nascia o Porão, night club-ervilha no subsolo da galeria da Assembléia
Paraense, o clube do hight society, onde a butique Carnaby, do Gilberto
Coutinho e David Abud, vestia hoje o moderninho de amanhã.
Havia também grandes
instituições culturais correndo por fora. A maior delas era, sem dúvidas, o Bar
do Parque, quiosque ao lado do teatro da Paz, uma das heranças do período áureo
da borracha, que colocou Belém no patamar das grandes cidades européias, mas
disso todo mundo sabe.
“Tamos falando do Bar
do Parque, porra!”, interrompia o poeta e letrista Ruy Barata.
Parceiro do filho
Paulo André em geniais canções, comunista oficial do Estado, fazia dali a sua
universidade livre, em meio aos boêmios e às putas.
Deputado federal,
deputado estadual duas vezes, professor de filosofia, articulador político incansável,
Ruy Barata tinha fiéis seguidores desde o Café Central, algumas quadras acima,
na avenida Presidente Vargas, onde as cabeças coruscantes sentavam praça – não
por acaso, Clarice Lispector morou seis mese bem ali em cima, no Hotel Central,
nos anos 50.
Quando Ruy Barata se
mudou para as escadarias na lateral do Teatro da Paz, o pessoal veio no vácuo.
Depois, todas as
tribos se confundiram no Bar do Parque, que compreende (duplo sentido), a
escadaria, tendo como elo de ligação os irmãos Farah – José e Alexandre –,
gêmeos impagáveis, comunista e pândegos de carteirinha.
O Bar do Parque nasceu
no momento em cercaram o Grande Hotel para o começo da demolição, um golpe de
direita na memória da cidade.
Sob o comando do
advogado João Batista Klautau, o doutor Joca, sócios-atletas do bar e das mesas
do calçadão em frente ao requintado hotel só precisaram atravessar a rua para
se alojar no novo ponto.
O dono, muito do
esperto, colocou umas belas mesas e cadeiras de ferro atrás do quiosque para o
pessoal discutir mais confortavelmente os temas do momento, como a Guerra dos
Seis Dias.
Outra grande instituição
era o contrabando, capital primitivo de algumas fortunas da “Metróple da
Amazônia”.
Alguns contrabandistas
só faltavam afixar na porta de suas casas e mansões uma placa com a sua
ocupação. Nem precisava: estava na testa. Nos 15 anos dos filhos de alguns,
saíamos sobraçando garrafas de uísque.
A rota do contrabando
era Paramaribo. Trocava-se café por carrões americanos, uísque (de preferência
Old Parr) e cigarro. Mas tudo vinha de fora para Belém. A Belém-Brasília ainda
era uma rodovia lamacenta, volta e meia interditada pelas chuvas.
Para você ter idéia
desse isolamento, a chegada do time juvenil do Clube do Remo, cuja base veio do
infantil, era um acontecinento em algumas cidades do interior.
Em Apeú, como de
costume, fomos recebidos com imenso carinho. Mas dentro do campo os jogadores
locais viravam bicho. Davam a vida para vencer o pessoal da capital. E estavam
perdendo de 1 a 0.
Na partida,
transmitida por um alto-falante, os jogadores deles tinham nome, sobrenome,
CPF, Unesco, o diabo. Nós éramos apenas um número: “Cinco passa para o Onze,
que estica para o Nove...”
Perto do final, a
torcida se aglomerou atrás de mim. Naquele tempo, goleiro podia fazer cera, e
era isso o que eu estava fazendo. E tome casca de laranja, garrafas e pedras
passando rente à cabeça, e a voz do locutor cada vez mais histérica.
Nisso, Chico deu um
drible no zagueiro deles. Ao tentar o segundo, levou um sarrafo na boca do
estômago.
Sururu estabelecido, o
locutor gritava: “Pega o louro! Pega o louro!”
O único louro no campo
era eu. Pegaram.
Acordei no ônibus que
saiu (mais ou menos) sob proteção policial. Nossas excursões terminaram aí.
Nenhum comentário:
Postar um comentário