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quinta-feira, julho 13, 2017

Palmério Dória 14: O casal mais inteligente do mundo


Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre em Copacabana

Nessa altura do campeonato, numa manhã de domingo qualquer, fui com meu irmão ao campo de futebol do Colégio Nazaré, dos irmãos maristas. Ele já batia uma boa bola no gol. Eu nunca tinha sido apresentado a uma trave.

Nessa amanhã me apresentei. E fui descobrindo insuspeitada facilidade para agarrar as bolas que iam mandando para o gol. Com a descoberta dessa habilidade ganhei passaporte para entrar na turma do meu irmão. E também ganhei um outro status no Colégio do Carmo, onde os campeonatos internos pegavam fogo.

Quando alguém bateu que o Remo estava formando um time infantil, me mandei pra lá com aquela coragem dos bêbados e das crianças. Aceito pelo técnico Zuru, treinava futebol quase todas as tardes e, de noite, ia treinar futebol de salão na sede social do sofisticado clube construído num duvidoso estilo funcional, então considerado o má-xi-mo.

Algum tempo depois, havia duas equipes entrosadas, a branca e a azul, que faziam algumas preliminares do Remo. Foi nesse time que pintou Manuel Maria, que um dia jogaria ao lado do Pelé na ponta-direita do Santos. Naquele tempo era centroavante.

De vez em quando pipocava nos jornais uma matéria sobre o filho do goleiro dos 7 a 0 jogando no Remo: “Filho de peixe, peixinho é”. E comecei a participar da vida social do clube, onde a célebre Eneida, paraense exilada no Rio, promovia todos os anos a nossa versão do Baile do Pierrô.

Num desses bailes de Carnaval, paquerei no salão uma menina com corpinho apetitoso. O rosto dela coberto por um capuz, o meu também. Demos mil voltas, abraçados no salão. No fim do baile, tiramos os capuzes. Ufa!

O rosto dela também era uma belezinha. E melhor ainda: era a garota que eu via ao sair dos treinos no portão de uma casa modernosa ao lado do estádio do Remo. Namoro instantâneo, tipo Nescau, sabe?

Namorinho de portão, biscoito, café. Jamais nos encontramos fora dali. Mas naquela hora, entre 6 e 7, era a coisa mais importante do mundo. De mãos dadas com uma garota delicada, cheirosa, mimosa, a própria imagem da tranquilidade. Agora eu podia dizer que tinha uma namorada. Era impossível não pensar na Sônia como a esposa ideal.

Alguém sempre dava um jeito de lembrar que ela era sobrinha do governador Aurélio do Carmo, quadro do PSD, que seria defenestrado do poder pelos militares em 1964 – o folclore sobre a vida dele me interessava muito: diziam que entornava bonito, que dançava até altas horas na Maloca, boate parecida com uma taba indígena, na Praça da República, na companhia do prefeito Moura Carvalho, igualmente boêmio, a quem atribuíam um caso com a divina Elizeth Cardoso.

Pelas frestas dos bambus, a gente às vezes olhava o movimento dentro da Maloca. Por elas, muitos viram o casal mais inteligente do mundo – Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir – conversando alegremente, bicando caipirinha. Eles estavam hospedados no Grande Hotel, em frente à praça. Na companhia deles, o jornalista Floriano Jayme.

Todos davam gargalhadas com a mentira que o Floriano Jayme inventara um tempo atrás, no dia 1º de abril, sobre a morte do próprio Jean-Paul Sartre, “atropelado em Belém”. A Tribuna da Imprensa, de Carlos Lacerda, abriu manchete. E a notícia correu o mundo.

Floriano trabalhava no Correio da Manhã, do Rio, e estava na cidade para cobrir a captura de um francês procurado internacionalmente. Sem muito que fazer, passou um telegrama com a lorota para o escritor José Condé, diretor literário do Correio da Manhã e do Jornal de Letras, no Dia da Mentira, que só chegou dois dias depois.

José Condé levou a coisa a sério, ligou para Lacerda, dono da Tribuna que mudou a manchete e deu o “furo” em oito colunas.

As agências noticiosas repassaram a bomba para o mundo inteiro. Uma delas ligou para Belém, em busca de maiores detalhes, e o chefe de reportagem disse que o pessoal estava na rua, colhendo detalhes, o que confirmava na notícia.

O próprio Sartre desmentiria a morte dele, vivíssimo, na Côte d’Azur, no mesmo dia, às 11 horas da noite.

Ali na Maloca, Sartre estava contando a Floriano que tinha adorado a história toda, que acabaria entrando no quarto volume das memórias de Simone de Beauvoir.

Sônia não era de falar muito. Aliás, não era de falar nada. Mesmo para me dar um pé na bunda, usou a chamada expressão corporal. Um tranco no peito. Mas senti que não havia apelação. O encanto tinha acabado, e pronto.

Evitava sair pelo lado da casa dela, para não vê-la. Voltei a ver muitos anos depois, de férias em Belém, nos jornais: ela matara o marido adúltero despejando-lhe no ouvido uma chaleira de água fervente.

Diz que ele fez, aconteceu, aprontou, ela na dela, até cozinhar os miolos do cara. Deixou que ele dormisse numa boa, depois de uma farra, esquentou a água, deixou ferver na maior tranquilidade, e pimba!

Deu o que pensar: durante alguns segundos me coloquei no lugar dele.

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