Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre em Copacabana
Nessa altura do
campeonato, numa manhã de domingo qualquer, fui com meu irmão ao campo de
futebol do Colégio Nazaré, dos irmãos maristas. Ele já batia uma boa bola no
gol. Eu nunca tinha sido apresentado a uma trave.
Nessa amanhã me apresentei.
E fui descobrindo insuspeitada facilidade para agarrar as bolas que iam
mandando para o gol. Com a descoberta dessa habilidade ganhei passaporte para
entrar na turma do meu irmão. E também ganhei um outro status no Colégio do
Carmo, onde os campeonatos internos pegavam fogo.
Quando alguém bateu
que o Remo estava formando um time infantil, me mandei pra lá com aquela
coragem dos bêbados e das crianças. Aceito pelo técnico Zuru, treinava futebol
quase todas as tardes e, de noite, ia treinar futebol de salão na sede social
do sofisticado clube construído num duvidoso estilo funcional, então
considerado o má-xi-mo.
Algum tempo depois,
havia duas equipes entrosadas, a branca e a azul, que faziam algumas
preliminares do Remo. Foi nesse time que pintou Manuel Maria, que um dia
jogaria ao lado do Pelé na ponta-direita do Santos. Naquele tempo era
centroavante.
De vez em quando
pipocava nos jornais uma matéria sobre o filho do goleiro dos 7 a 0 jogando no
Remo: “Filho de peixe, peixinho é”. E comecei a participar da vida social do
clube, onde a célebre Eneida, paraense exilada no Rio, promovia todos os anos a
nossa versão do Baile do Pierrô.
Num desses bailes de
Carnaval, paquerei no salão uma menina com corpinho apetitoso. O rosto dela
coberto por um capuz, o meu também. Demos mil voltas, abraçados no salão. No
fim do baile, tiramos os capuzes. Ufa!
O rosto dela também
era uma belezinha. E melhor ainda: era a garota que eu via ao sair dos treinos
no portão de uma casa modernosa ao lado do estádio do Remo. Namoro instantâneo,
tipo Nescau, sabe?
Namorinho de portão,
biscoito, café. Jamais nos encontramos fora dali. Mas naquela hora, entre 6 e
7, era a coisa mais importante do mundo. De mãos dadas com uma garota delicada,
cheirosa, mimosa, a própria imagem da tranquilidade. Agora eu podia dizer que
tinha uma namorada. Era impossível não pensar na Sônia como a esposa ideal.
Alguém sempre dava um
jeito de lembrar que ela era sobrinha do governador Aurélio do Carmo, quadro do
PSD, que seria defenestrado do poder pelos militares em 1964 – o folclore sobre
a vida dele me interessava muito: diziam que entornava bonito, que dançava até
altas horas na Maloca, boate parecida com uma taba indígena, na Praça da
República, na companhia do prefeito Moura Carvalho, igualmente boêmio, a quem
atribuíam um caso com a divina Elizeth Cardoso.
Pelas frestas dos
bambus, a gente às vezes olhava o movimento dentro da Maloca. Por elas, muitos
viram o casal mais inteligente do mundo – Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir
– conversando alegremente, bicando caipirinha. Eles estavam hospedados no
Grande Hotel, em frente à praça. Na companhia deles, o jornalista Floriano
Jayme.
Todos davam gargalhadas
com a mentira que o Floriano Jayme inventara um tempo atrás, no dia 1º de
abril, sobre a morte do próprio Jean-Paul Sartre, “atropelado em Belém”. A
Tribuna da Imprensa, de Carlos Lacerda, abriu manchete. E a notícia correu o
mundo.
Floriano trabalhava no
Correio da Manhã, do Rio, e estava na cidade para cobrir a captura de um
francês procurado internacionalmente. Sem muito que fazer, passou um telegrama
com a lorota para o escritor José Condé, diretor literário do Correio da Manhã
e do Jornal de Letras, no Dia da Mentira, que só chegou dois dias depois.
José Condé levou a
coisa a sério, ligou para Lacerda, dono da Tribuna que mudou a manchete e deu o
“furo” em oito colunas.
As agências noticiosas
repassaram a bomba para o mundo inteiro. Uma delas ligou para Belém, em busca
de maiores detalhes, e o chefe de reportagem disse que o pessoal estava na rua,
colhendo detalhes, o que confirmava na notícia.
O próprio Sartre
desmentiria a morte dele, vivíssimo, na Côte d’Azur, no mesmo dia, às 11 horas
da noite.
Ali na Maloca, Sartre
estava contando a Floriano que tinha adorado a história toda, que acabaria
entrando no quarto volume das memórias de Simone de Beauvoir.
Sônia não era de falar
muito. Aliás, não era de falar nada. Mesmo para me dar um pé na bunda, usou a
chamada expressão corporal. Um tranco no peito. Mas senti que não havia
apelação. O encanto tinha acabado, e pronto.
Evitava sair pelo lado
da casa dela, para não vê-la. Voltei a ver muitos anos depois, de férias em
Belém, nos jornais: ela matara o marido adúltero despejando-lhe no ouvido uma
chaleira de água fervente.
Diz que ele fez,
aconteceu, aprontou, ela na dela, até cozinhar os miolos do cara. Deixou que
ele dormisse numa boa, depois de uma farra, esquentou a água, deixou ferver na
maior tranquilidade, e pimba!
Deu o que pensar:
durante alguns segundos me coloquei no lugar dele.
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