Por André de Oliveira
Em 2016, logo após assumir a
curadoria da Festa Literária de Paraty, a Flip, a jornalista cultural e
historiadora Joselia Aguiar conversou com o jornal El País. Sua ideia, já
clara, era fazer com que um dos principais eventos de literatura do país
tivesse mais diversidade em sua programação: com mais presença feminina e de
autores negros.
Dez meses depois e a menos de duas
semanas do evento, a intenção virou realidade. A Flip deste ano é a mais
diversa da história do evento, buscando autores que estão fora do radar do
grande mercado editorial. Na entrevista abaixo, Joselia conta sobre o processo
de curadoria e o que descobriu ao longo dele, além de comentar destaques da
programação e refletir sobre o que espera do evento.
A última edição da Flip, em 2016, sofreu críticas de parte do movimento
negro pela ausência de diversidade nas mesas. Desta vez, a programação é a mais
diversa vista até agora, com grande presença feminina e de autores e autoras
negros. Foi uma resposta a uma demanda?
Não no sentido de que eu, como
curadora, cumpri uma demanda que não era minha. Eu tenho um percurso e as
escolhas que fizemos para este ano são condizentes com ele. Nasci em Salvador,
estudei a fotografia da Bahia negra do etnofotógrafo Pierre Verger,
recentemente finalizei uma biografia do Jorge Amado. Assim, as opções da
programação não são apenas uma mera formalidade ou o cumprimento de uma tarefa
da “marca” Flip. Ao mesmo tempo, a força que eu tive para fazer essas mudanças
no programa veio, principalmente, da internet, onde dois movimentos ativistas
fortes [feminista e negro] começaram a receber bem as novidades. Embora não
seja uma resposta imediata às críticas, minha curadoria se beneficiou, sim,
dessa força e expectativa.
E o que você descobriu sobre o mundo editorial brasileiro nesse
processo de fazer uma curadoria com mais diversidade?
Há um conjunto de nano, micro e
pequenas editoras que são fundadas e tocadas por mulheres. Eu poderia sentar
aqui e falar logo umas quinze em diferentes Estados. Isso é muito interessante.
Eu também percebo que existe uma tradição de literatura afro-brasileira que é
publicada por algumas editoras que sempre estiveram um pouco à margem, como a
Mazza, em Minas Gerais. Ao mesmo tempo, estão nascendo outras iniciativas de
publicação afro-brasileira, como a Malê, no Rio de Janeiro, e a Kapulana, em
São Paulo. E, conversando com eles, é possível entender que isso também é resultado
das ações afirmativas que colocaram mais negros na Universidade, possibilitando
a formação de mais intelectuais interessados em conhecer a própria história
afro-brasileira. O tamanho desse mundo editorial é incrível e é impressionante
como se percebe um Brasil que não está aparecendo nos jornais. Agora, a duas
semanas do evento, eu sinto que as pessoas que querem ir à Flip estão muito
interessadas em conhecer essas novidades. Não se trata de rivalizar com uma
literatura de massa ou mais estabelecida no mercado, mas de construir uma nova
situação, um novo espaço, para outro tipo de projeto.
Desse modo, o evento se afasta um pouco do mercado editorial que já tem
mais visibilidade?
Não é possível dizer que há uma
coisa completamente desconectada do mercado. Em benefício do próprio autor,
eles querem poder vender os livros. Mas, sem dúvida, minha grande preocupação
foi mapear aquilo que não está ao alcance da vista imediatamente. Foi buscar o
que há de interessante e está fora do radar: seja porque é uma autora mulher e
o mercado está pouco aberto, seja porque é um autor negro e enfrenta barreiras
semelhantes, seja porque é um autor que está em um algum lugar distante
editorialmente do Brasil, como é o caso da Islândia e Ruanda, representadas
pelo autor Sjón e pela escritora Scholastique Mukasonga, respectivamente.
De certa forma, é uma Flip para ser descoberta, então?
Sim. Eu acredito que a Flip, por
ser a maior festa literária, a pioneira, pode ter o arrojo de sair na vanguarda
de alguma coisa. Para que ela permaneça como referência, tenha relevância e
paute a imprensa, é preciso trazer coisas novas e não apenas refletir o que já
existe no mercado consolidado. Agora, não dá pra dizer nunca que a Flip está
desvinculada do mercado editorial. Por quê? Porque o autor vai lá e ele próprio
tem suas expectativas. Há uma livraria oficial e as pessoas encontram os livros
dos convidados lá. E isso é importante também. Além do mais, a relação com as
editoras, com agentes literários e, no caso dos estrangeiros, com as
embaixadas, é extremamente importante. O trabalho de curadoria é feito em 10
meses e a conversa é essencial para que ele seja construído.
Uma lista publicada pelo NexoJornal mostra que dois dos primeiros
livros mais vendidos no Brasil desde 2010 são do bispo Edir Macedo e o terceiro
é o best-seller A Culpa é Das Estrelas. Não é estranho estarmos discutindo o
mercado editorial quando quem está no topo são esses livros?
Isso sempre existiu e eu acho
contraproducente ficar reclamando que agora os youtubers, por exemplo, estão
fazendo os livros mais vendidos. Eu acredito que é quase como você atacar
aliados. O problema não é o best-seller, nunca foi. O problema, de sempre, é
que é necessário formar leitores, estimular a leitura, fazer com que as pessoas
se aproximem de formas mais complexas de linguagem. E a Flip, acredito, tem
capacidade de ajudar nisso um pouco. Por isso, não passa pela minha cabeça
ficar reclamando que o mais vendido é o Padre Marcelo Rossi ou o Edir Macedo.
Ao mesmo tempo, há um cenário de pequenas editoras com propostas de
livros mais artesanais – presente em eventos como a Feira Plana, de São Paulo.
Algo que foge não só do grande mercado, mas da velha discussão que se questiona
se o papel vai acabar etc.
É curioso, mas acho que isso está
sendo possível graças às novas tecnologias. É o desenvolvimento tecnológico que
possibilita um barateamento de custos, assim como a facilidade de disseminar
uma mensagem pela internet e atingir nichos de muita afinidade. E eu não tenho
como provar, mas fazendo uma observação do mercado, parece que quanto mais a
crise aperta, mais as pessoas procuram se vincular a essas iniciativas. É quase
como uma forma de tentar se fortalecer. São projetos mais independentes e de
maior resistência. É na crise que percebemos como as pessoas gostam de livros.
Por falar nisso, e a crise política? Como vai aparecer nessa Flip?
Muitas vezes os eventos são
cobrados a discutir questões que estão acontecendo, mas acho que deve haver o
cuidado para não se transformar um evento literário em um programa de debates
só sobre a crise. Claro que isso vai aparecer naturalmente e, obviamente, os
autores estão liberados para dizer o que quiserem. Também acho que, com a
programação, estamos tocando no aspecto mais importante deste país: a
desigualdade social e racial. É uma forma de contribuir para o debate da crise
política, mas com a contribuição que é possível para a Flip, sendo que ela é
uma festa de literatura. Por fim, há também o fato de que o homenageado, Lima
Barreto, falava muito de política, apontava os problemas da República e como
ela estava se constituindo, abordava também o tema da corrupção. Então, acho
que as diferentes crise vão permear as conversas.
Você já tinha uma história com o Lima Barreto, não?
Em 2013, quando terminou a Flip, o
nome dele surgiu em uma coletiva de encerramento. Depois, algumas pessoas
começaram a sugerir o nome dele na internet. A partir daí, a historiadora
Denise Bottmann teve a ideia de fazer um abaixo-assinado para que o nome dele
fosse emplacado. Eu participei disso. Era uma brincadeira de internet, mas
acontece que acabamos reunindo mil nomes, como Gilberto Gil, João Ubaldo
Ribeiro e Nicolau Sevcenko. Assim, desde essa época, há uma expectativa sobre
isso. Quando eu fui escolhida curadora, argumentei em favor dele e também dei
sorte de pegar um momento bem oportuno do debate racial no Brasil e no mundo.
E por que o Lima?
É um autor que eu só fui conhecer,
de fato, na minha pesquisa para a biografia do Jorge Amado. E a influência que ele
teve para o Jorge Amado me impressionou bastante. Nos anos 1920, o Jorge Amado
fazia parte de um grupo de jovens poetas que tinha como mentor um cara chamado
Pinheiro Viegas, um escritor baiano que tinha vivido no Rio de Janeiro e tinha
feito parte da turma de botequim do Lima. Quando esse cara chega a Bahia na
segunda metade da década de 1920, ele conhece esse grupo de jovens poetas que
não era vinculado ao modernismo paulista. Eles eram modernos sem serem
modernistas. Naquele momento eles achavam que o pessoal de São Paulo só estava
reproduzindo um modelo estrangeiro, mas eles tinham uma pesquisa com a cultura
popular baiana muito grande. Algo bem na linha do que defendia o Lima Barreto.
Por isso tudo, fui entender quem era o Lima e fiquei muito entusiasmada.
E como surgiu o nome da arqueóloga Niède Guidon, fundadora do parque
arqueológico da Serra da Capivara, no Piauí, para integrar a programação?
Isso tudo tem muito a ver com o
Lima Barreto: a ideia de você escavar para encontrar coisas que não estão ali
na superfície. Você construir um pensamento através de recolhas que vai
escavando, como fez Francisco de Assis Barbosa, que foi o arqueólogo de Lima
Barreto ao escrever a biografia do escritor e organizar sua obra completa nos
anos 1950. A Flip tem a tradição de sempre ter uma mesa de ciência e, pensando
em toda a programação, veio logo a minha mente o nome da Niède Guidon. Ela é
mulher, na resistência, trabalhando em uma área mais periférica da ciência, no
Piauí, e que, apesar da ressonância mundial que seu trabalho tem, sofre
constantemente com falta de verba e o perigo de ter de fechar o parque. E isso
também me parece muito próprio do universo feminino. Eu escutei várias vezes
isso nos últimos dez meses de curadoria: “repare como a resistência é sempre
feminina”. E é verdade. A mulher parece ter predisposição para encarar e estar
na frente de projetos de muita resistência. A Niède Guidon também resume muito
bem isso.
Com tantas novidades, o que você espera que permaneça nessa Flip?
O que sempre foi incrível para mim
é que existe um espaço em que os escritores estão falando sobre a obra de forma
informal, espontânea. E a emoção de ouvi-los é o que ficou para mim depois de
todas as Flips de que participei. Quero que seja, mais uma vez, um ambiente em
que a literatura ocupa o primeiro plano por alguns dias. Isso é tão fora do
imediatismo. É algo tão estimulante e que a gente não consegue ter diariamente.
Não quero que o evento perca essa atmosfera. Acredito que vão ser dias felizes,
apesar da crise que o país vive.
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