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sábado, julho 15, 2017

Palmério Dória 24: Clube dos corações solitários


Exilado do palacete, só podendo falar com a Lúcia pelo telefone da Princesa das Flores ou da sede do Paysandu, passei a me dedicar mais aos treinos, embora tivesse de cumprir o estágio de mais ou menos um ano parado em jogos oficiais, que caía sobre o amador que mudava de clube.

Assim que acabávamos, íamos ver o Castilho treinar ali da arquibancada de madeira do Papão da Curuzu. Era algo arrasador. De uniforme todo azul, com o escudo alviceleste no meio da camisa, praticamente ocupava a trave.

Dava para entender rápido por que o comparavam a Yashin, o Aranha Negra, goleiro da União Soviética. Uma legião de castilhófilos se reunia todas as tardes, num verdadeiro torneio sobre a vida do ídolo. Eles sabiam...

... que ele amputou duas falanges do dedo mindinho esquerdo para continuar jogando porque a recuperação era muito problemática – e colocava um esparadrapo para fazer volume no local.

... que jogou quatro Copas do Mundo – de 1950 a 1962, mas foi titular apenas em 1954.

... que ele costumava dizer que teve o azar de pegar o Gilmar pela frente nas Copas de 1958 e 1962; considerava o rival simplesmente fantástico.

... que ele dava sorte no Fluminense, a bola batia na trave, na cara dele, desviava em algum jogador – era a famosa leiteria.

... que se dava ao luxo de ter na reserva um goleiro extraordinário, Veludo, também reserva dele na seleção, na Copa de 1954, talvez um caso único no futebol brasileiro.

... que em 1952 defendeu seis pênaltis, só observando como os craques da época – Jair, Ademir, Zizinho ... – batiam.

... que ele não dava sorte na seleção, talvez pelo vexame da Copa de 1950 e pelo fracasso da copa de 1954.

... que foi titular no Pan-Americano de Santiago, em 52, ganhando o título na final contra o Uruguai, que jogou com o mesmo time da Copa de 50.

... que trocou o uniforme preto pelo cinza, para ficar “invisível” pro atacantes.

... que era daltônico, o que era bom de dia, porque enxergava vermelhas as bolas amarelas, mas um problema à noite, que dificultava a visão das bolas brancas.

... que a formação Castilho, Píndaro e Pinheiro era fenomenal.

... que demorou muito para os jogadores entrarem pela porta da frente do estádio das Laranjeiras, do aristocrático Fluminense – entravam por baixo da arquibancada, pelos fundos.

... que um mulato chamado Carlos Alberto passava pó-de-arroz na cara para ficar parecendo branco e poder jogar pelo tricolor – daí os torcedores do Fluminense serem chamados de pó-de-arroz.

... que Castilho jogava pelo Fluminense desde 1946.

... que era chamado de São Castilho...

... que no Gol de Placa no Maracanã, Pelé driblou o time inteiro do Fluminense e entrou com bola e tudo no gol.

... que, no Gol de Placa no Maracanã, Pelé driblou o time inteiro do Fluminense, mas não entrou com bola e tudo, não...


O que eles não sabiam. Castilho era um cavalheiro atormentado. Pelo menos uma vez por semana ia conversar com o meu amigo Ápio Campos, na varanda de uma casa na rua Ruy Barbosa, em busca de conforto espiritual.

Nessa varanda chegou aos prantos diversas vezes: a mulher não amava. Ele, ao contrário, era louco de amor por ela.

Como eu era da casa, encontrei-o várias vezes, mas só trocávamos um discreto cumprimento.

O drama de Castilho me transportava para o meu próprio drama. 

Nessa varanda cheguei aos prantos diversas vezes: e se a Lúcia não me amasse? Eu estava louco de amor por ela.

Acabei sendo anistiado pelo brigadeiro, voltei a sair com a Lúcia, sem o sufoco da clandestinidade.

Mas, na medida em que a gente se afinava, minha bola murchava em campo.

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