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sábado, dezembro 14, 2019

Flávio Minuano, o galo campeão malaio do Kepelé



Sadok Pirangy, Kepelé, Luiz Lobão e Mário Caçapava no Barraka’s Drinks

Setembro de 1976. Veterinário profissional e renitente criador de aves de capoeira, meu pai, o velho Simão, havia adquirido uma dúzia de galinhas caipiras e feito um galinheiro no quintal de casa, na rua Parintins, na Cachoeirinha, que possuía até mesmo uma chocadeira artesanal.

Seu objetivo era garantir tanto “os ovos nossos de cada dia” quanto “a galinha à cabidela de todos os domingos”, sem depender dos granjeiros da Colônia Japonesa.

No intuito de melhorar geneticamente o plantel do velho, o Simas Careca Selvagem pediu emprestado do Kaká um dos famosos galos taquiri criados pelo seu Cristovão Almeida.

Dono da empresa de rádio-taxi do Aeroporto, seu Cristovão era pai dos homeboys Bebeto, Lemos, Caxito, Kaká, etc, e reputado como um dos melhores criadores de galos de briga de Manaus.

O galo que foi emprestado para o Careca Selvagem era ainda jovem, de grande porte, muito musculoso, de penas curtas, escassas e bem aderentes ao corpo, com cabeça de gavião e crista de ervilha. Devia pesar uns 5 kg. Sua única função era cobrir as galinhas caipiras.

Um exemplar de galo combatente do tipo taquiri

Por essa época, o folclórico Kepler Evandro, o “Kepelé”, irmão do Wilson Fernandes, costumava desfilar pelas ruas do bairro carregando em uma sacola de pano um robusto galo Rhode Island Red, que ele chamava de “Flávio” e também pesava uns 5 kg.

Alguém se aproveitara da ignorância do Kepelé sobre o assunto e lhe vendera por uma pequena fortuna aquele velho galo de corte como se fosse um autêntico galo de briga malaio.

Kepelé tratava o seu guerreiro malaio a pão-de-ló e tinha verdadeira adoração pelo bicho. Não deixava nem mesmo ele pegar sereno.

Apesar de flamenguistas, Kepelé batizara seu galo de “Flávio” em homenagem a Flávio Minuano, o Flávio Almeida da Fonseca, ex-centroavante do Internacional, Corinthians e Fluminense, nos anos 60 e 70.

Aliás, Pelé e Romário não são os únicos jogadores brasileiros a terem feito mais de 1000 gols.

Flávio Minuano garantia também ter atingido a marca.

“Realmente fiz mais de 1000 gols. E essa marca é um orgulho pra mim. Só estrou atrás do Pelé em números de gols marcados aqui no Brasil”, dizia Minuano, que segundo relatos, teria marcado 1070 gols.

Um exemplar de galo Rhode Island Red, conhecido 
na Cachoeirinha como “falso malaio”

Uma tarde de sábado, aproveitando-se da ausência do Pai Simão em casa, o sempre maquiavélico Simas convidou Kepelé para uma luta de demonstração entre o suposto galo de briga malaio e o recém-emprestado taquiri.

Kepelé topou, provavelmente pelo fato de seu campeão ainda estar invicto (nunca havia lutado antes).

Mal comparando, foi como colocar dentro de um octógono do UFC um campeão peso pesado de vale tudo (o Júnior Cigano, por exemplo) para enfrentar um gordinho simpático (o Jô Soares, por exemplo).

Com trinta segundos de escaramuças, o taquiri já havia vazado um dos olhos do “Flávio” e transformado sua vistosa crista de serra em um disforme patê de fígado.

Por causa do olho cego, o malaio começou a encarar o taquiri meio de lado durante a trocação de golpes, se transformando em uma presa fácil.

Com mais trinta segundos de escaramuças, o taquiri vazou o segundo olho do “Flávio” e abriu um formidável corte no peito do malaio graças a uma esporada de trivela.

Kepelé entrou em desespero:

– Reage, Flávio, reage, Flávio! – berrava o treinador, transtornado, apoplético, nervoso.

O apelo se mostrou inútil. O malaio continuou sendo espancado ferozmente pelo taquiri.

De repente, o até então altivo Rhode Island Red parou de lutar e se transformou em uma submissa galinha pedrês, adotando a postura de “galinha chocando ovos”, acocorado e com a cabeça pendendo para o chão.

O taquiri também parou de lutar e começou a andar em círculos em torno do rival, que permanecia acocorado e praticamente imóvel, aproveitando, de vez em quando, para emitir seu grito de guerra vitorioso que deve ter assustado a vizinhança.

Transtornado com o que estava assistindo, Kepelé jogou a toalha antes que o taquiri, mais abusado do que nunca, montasse, enrabasse e beijasse na nuca daquele desmoralizado campeão malaio.

Simas rapidamente separou os dois galos, trancou o taquiri no galinheiro e foi ajudar Kepelé a prestar os primeiros socorros ao “Flávio”.

Nem os seguidos banhos de água gelada levantaram o ânimo do campeão malaio.

Inconformado com aquele desfecho mais do que previsível, Kepelé levou o Rhode Island Red desfigurado para a casa do Luiz Lobão, na ladeira da rua Parintins, provavelmente para pedir ajuda de dona Francisca, mãe do Luiz e uma das enfermeiras mais competentes do bairro.

Para uma nova decepção de Kepelé e derradeira desgraça do “Flávio”, dona Francisca estava de plantão no Sanatório Adriano Jorge.

– Reage, Flávio, reage, Flávio! – berrava Kepelé, jogando milho para seu campeão malaio cada vez mais mofino. O galo nem aí.

Luiz Lobão olhou com extrema compaixão para aquele galo cabisbaixo e cego dos dois olhos, se aproximou, apanhou jeitosamente o galo no colo, começou a acariciar seu pescoço ainda manchado de sangue, aí, como se estivesse pensando em voz alta, cantou a pedra:

– Porra, Kepelé, em vez de deixar o Flávio sofrendo desse jeito é melhor a gente sacrificar o infeliz!

Antes que o Kepelé dissesse qualquer coisa, Luiz Lobão já havia quebrado o pescoço do campeão malaio.

Na sequência, entrou na sua casa levando o galo pelo pescoço, colocou a panela de pressão no fogo e duas horas depois o “Flávio” estava sendo servido em grande estilo.

O Careca Selvagem, evidentemente, não foi convidado para o banquete antropofágico.

Brincadeira tem hora.

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