Sadok Pirangy, Kepelé, Luiz Lobão e Mário Caçapava no Barraka’s Drinks
Setembro de 1976.
Veterinário profissional e renitente criador de aves de capoeira, meu pai, o
velho Simão, havia adquirido uma dúzia de galinhas caipiras e feito um
galinheiro no quintal de casa, na rua Parintins, na Cachoeirinha, que possuía
até mesmo uma chocadeira artesanal.
Seu objetivo era garantir
tanto “os ovos nossos de cada dia” quanto “a galinha à cabidela de todos os
domingos”, sem depender dos granjeiros da Colônia Japonesa.
No intuito de melhorar
geneticamente o plantel do velho, o Simas Careca Selvagem pediu emprestado do
Kaká um dos famosos galos taquiri criados pelo seu Cristovão Almeida.
Dono da empresa de
rádio-taxi do Aeroporto, seu Cristovão era pai dos homeboys Bebeto, Lemos,
Caxito, Kaká, etc, e reputado como um dos melhores criadores de galos de briga
de Manaus.
O galo que foi emprestado
para o Careca Selvagem era ainda jovem, de grande porte, muito musculoso, de
penas curtas, escassas e bem aderentes ao corpo, com cabeça de gavião e crista
de ervilha. Devia pesar uns 5 kg. Sua única função era cobrir as galinhas
caipiras.
Um exemplar de galo combatente do tipo taquiri
Por essa época, o
folclórico Kepler Evandro, o “Kepelé”, irmão do Wilson Fernandes, costumava
desfilar pelas ruas do bairro carregando em uma sacola de pano um robusto galo
Rhode Island Red, que ele chamava de “Flávio” e também pesava uns 5 kg.
Alguém se aproveitara da
ignorância do Kepelé sobre o assunto e lhe vendera por uma pequena fortuna
aquele velho galo de corte como se fosse um autêntico galo de briga malaio.
Kepelé tratava o seu
guerreiro malaio a pão-de-ló e tinha verdadeira adoração pelo bicho. Não
deixava nem mesmo ele pegar sereno.
Apesar de flamenguistas,
Kepelé batizara seu galo de “Flávio” em homenagem a Flávio Minuano, o Flávio
Almeida da Fonseca, ex-centroavante do Internacional, Corinthians e Fluminense,
nos anos 60 e 70.
Aliás, Pelé e Romário não
são os únicos jogadores brasileiros a terem feito mais de 1000 gols.
Flávio Minuano garantia
também ter atingido a marca.
“Realmente fiz mais de
1000 gols. E essa marca é um orgulho pra mim. Só estrou atrás do Pelé em
números de gols marcados aqui no Brasil”, dizia Minuano, que segundo relatos,
teria marcado 1070 gols.
Um exemplar de galo Rhode Island Red, conhecido
na Cachoeirinha como “falso malaio”
na Cachoeirinha como “falso malaio”
Uma tarde de sábado,
aproveitando-se da ausência do Pai Simão em casa, o sempre maquiavélico Simas
convidou Kepelé para uma luta de demonstração entre o suposto galo de briga
malaio e o recém-emprestado taquiri.
Kepelé topou,
provavelmente pelo fato de seu campeão ainda estar invicto (nunca havia lutado
antes).
Mal comparando, foi como
colocar dentro de um octógono do UFC um campeão peso pesado de vale tudo (o
Júnior Cigano, por exemplo) para enfrentar um gordinho simpático (o Jô Soares,
por exemplo).
Com trinta segundos de
escaramuças, o taquiri já havia vazado um dos olhos do “Flávio” e transformado
sua vistosa crista de serra em um disforme patê de fígado.
Por causa do olho cego, o
malaio começou a encarar o taquiri meio de lado durante a trocação de golpes,
se transformando em uma presa fácil.
Com mais trinta segundos
de escaramuças, o taquiri vazou o segundo olho do “Flávio” e abriu um
formidável corte no peito do malaio graças a uma esporada de trivela.
Kepelé entrou em
desespero:
– Reage, Flávio, reage,
Flávio! – berrava o treinador, transtornado, apoplético, nervoso.
O apelo se mostrou inútil.
O malaio continuou sendo espancado ferozmente pelo taquiri.
De repente, o até então
altivo Rhode Island Red parou de lutar e se transformou em uma submissa galinha
pedrês, adotando a postura de “galinha chocando ovos”, acocorado e com a cabeça
pendendo para o chão.
O taquiri também parou de
lutar e começou a andar em círculos em torno do rival, que permanecia acocorado
e praticamente imóvel, aproveitando, de vez em quando, para emitir seu grito de
guerra vitorioso que deve ter assustado a vizinhança.
Transtornado com o que
estava assistindo, Kepelé jogou a toalha antes que o taquiri, mais abusado do
que nunca, montasse, enrabasse e beijasse na nuca daquele desmoralizado campeão
malaio.
Simas rapidamente separou
os dois galos, trancou o taquiri no galinheiro e foi ajudar Kepelé a prestar os
primeiros socorros ao “Flávio”.
Nem os seguidos banhos de
água gelada levantaram o ânimo do campeão malaio.
Inconformado com aquele
desfecho mais do que previsível, Kepelé levou o Rhode Island Red desfigurado
para a casa do Luiz Lobão, na ladeira da rua Parintins, provavelmente para
pedir ajuda de dona Francisca, mãe do Luiz e uma das enfermeiras mais
competentes do bairro.
Para uma nova decepção de
Kepelé e derradeira desgraça do “Flávio”, dona Francisca estava de plantão no
Sanatório Adriano Jorge.
– Reage, Flávio, reage,
Flávio! – berrava Kepelé, jogando milho para seu campeão malaio cada vez mais
mofino. O galo nem aí.
Luiz Lobão olhou com
extrema compaixão para aquele galo cabisbaixo e cego dos dois olhos, se
aproximou, apanhou jeitosamente o galo no colo, começou a acariciar seu pescoço
ainda manchado de sangue, aí, como se estivesse pensando em voz alta, cantou a
pedra:
– Porra, Kepelé, em vez de
deixar o Flávio sofrendo desse jeito é melhor a gente sacrificar o infeliz!
Antes que o Kepelé
dissesse qualquer coisa, Luiz Lobão já havia quebrado o pescoço do campeão
malaio.
Na sequência, entrou na
sua casa levando o galo pelo pescoço, colocou a panela de pressão no fogo e
duas horas depois o “Flávio” estava sendo servido em grande estilo.
O Careca Selvagem,
evidentemente, não foi convidado para o banquete antropofágico.
Brincadeira tem hora.
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