O empresário Argemiro
Carneiro
Dezembro de 1988. O empresário Argemiro Carneiro, irmão do Airton Caju, havia montado um estaleiro na baía do Rio Negro e começou a construir pequenos barcos regionais.
Para ajudar a combater o desemprego entre a moçada da Cachoeirinha, Argemiro priorizou a contratação do operariado entre os moradores do bairro.
Um dos contratados foi o abusado Nego Walter, já celebrado como um dos melhores pintores de parede da cidade. Ele fez uma série de exigências para ir trabalhar no estaleiro.
O empresário concordou com todas, provavelmente porque ambos jogavam futebol pelo mesmo time, o famigerado Estrela do Norte, onde Nego Walter pontificava como centroavante, artilheiro e queridinho da torcida, enquanto Argemiro não passava de um simples ponta-direita fuçador, mas sem muito brilho.
A qualidade dos barcos produzidos por Argemiro fez a demanda aumentar exponencialmente e, de repente, os mais de 50 operários começaram a ser obrigados a trabalhar, de hora-extra, nos sábados, para garantir a entrega das encomendas.
Todo mundo concordou, já que aquele “plus” representava um aumento substancial no salário do mês.
Todo mundo não. O Nego Walter, por exemplo, com uma conversa fiada de que havia “recebido Cristo como seu único e legítimo salvador”, explicou ao empresário que tinha abandonado a Igreja Católica e se convertido à Igreja Adventista do Círculo Quadrado do Cordeiro de Deus, onde era terminantemente proibido fazer qualquer tarefa no sábado.
Argemiro concordou de novo, provavelmente porque ambos jogavam futebol pelo mesmo time, Nego Walter era o queridinho da torcida, aquelas coisas todas.
Na véspera de Natal, um sábado, Argemiro começou a pagar o 13º salário da moçada, em dinheiro vivo, já que, naquela época, depositar a grana em conta corrente de agência bancária era quase um parto sem anestesia, em virtude das exigências dos bancos para abrir uma mísera conta para trabalhadores braçais.
Ele dava o envelope com a grana, o sujeito contava, confirmava que estava tudo OK, assinava um recibo e, aí, Argemiro lhe presenteava com uma garrafa de vinho Raposo, uma pequena cesta de Natal, com embutidos, frutas secas, enlatados, cereais e espumantes, e lhe desejava um Feliz Natal e um Próspero Ano Novo.
Os operários saíam do escritório em estado de graça.
Argemiro estava ali, entretido com aquela tarefa comezinha, quando percebeu a presença do Nego Walter no estaleiro. Ele não deu a mínima.
O cara, segundo a religião que abraçara, não podia fazer porra nenhuma no dia de sábado, que merda estava fazendo ali?...
Argemiro continuou na sua missão. Quando o último operário foi despachado, ele se levantou, falou para o vigia fechar o estabelecimento porque ele estava indo embora, e se dirigiu para o seu carro.
O Nego Walter foi atrás. Ele chegou manhoso:
– Patrãozinho, o senhor se esqueceu desse seu escravo...
– A tua grana está separada, parente! – avisou Argemiro, abrindo a porta do carro. – A tua religião não te permite receber dinheiro hoje. Passa aqui amanhã, que é domingo, pra você receber...
Nego Walter não sabia onde se esconder. Tirou a última carta da manga:
– Eu estou sem um puto no bolso. Dá pra você, pelo menos, me dá uma carona até a Cachoeirinha?
– Entra aí! – limitou-se a dizer Argemiro.
Nego Walter entrou e os dois, sem trocarem uma palavra, foram em direção à Cachoeirinha.
No cruzamento da Rua Parintins com a Rua Urucará, Argemiro parou o carro e foi peremptório:
– Desce aí, Sabará. Amanhã cedo você passa no estaleiro pra receber tua grana!
Nego Walter desceu, abriu a porta do carro e, para evitar que Argemiro fosse embora, se posicionou ao lado da porta aberta, se ajoelhando pateticamente no chão.
Com as duas mãos erguidas para o céu, o olhar posto nas estrelas, detonou:
– Meu Bom Jesus, me desculpe estar transgredindo um de seus ensinamentos, mas o Senhor sabe como eu estou necessitado desse dinheirinho... Me perdoe, Senhor, de receber esse dinheiro num sábado... Eu jurei guardar e santificar os feriados santos e dias de guarda, mas é uma emergência, Senhor, uma emergência... Eu estou fodido, senhor, eu estou fodido... Não tenho um puto em casa, Senhor, e eu e minha família precisamos muito desse dinheirinho, Senhor, para honrar o dia do Seu aniversário! Me perdoe, Senhor, me perdoe!
E começou a chorar, convulsivamente.
Argemiro ficou tão constrangido que abriu o porta-luvas, pegou a pacoteira, fez o pagamento do pintor na mesma hora e lhe entregou a pequena cesta de Natal.
Quando se preparava pra ir embora, Nego Walter meteu a cara na janela:
– E o vinho?...
– Vai tomar no cu, Sabará! – devolveu Argemiro. – Quem bebe vinho é o meu Deus, não é o teu...
E saiu de lá, cantando pneu.
Um mês depois, Nego Walter voltou para a Igreja Católica.
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