Debaixo dos caracóis dos meus cabelos tem um alma sebosa...
Fevereiro de 1975. No
sábado gordo, o pessoal da Cachoeirinha resolveu participar do 10º Baile de
Fantasias do Beasa, na época um dos mais concorridos e charmosos da cidade.
Junta grana daqui, junta grana dali, foram compradas dez mesas e 40 ingressos.
Quando a turma se
encontrou no clube, parecia uma “brincadeira” na casa da Doroteia. Uns 50
machos e umas 30 meninas. Tudo índio, tudo parente. Fui para a esbórnia na
companhia do saudoso Nei Parada Dura.
Assim que a banda de
sopros atacou as primeiras marchinhas, o salão se encheu de foliões dançando
alegremente. Dispostos a pegar o sol com a mão, eu e Nei Parada Dura nos
posicionamos estrategicamente nas proximidades do salão para conferir o
mulherio.
Nesse dia, eu estava
fantasiado de “headbanger fake” (óculos modelo Manhattan, que a Audrey Hepburn
imortalizou na cena de abertura de “Bonequinha de Luxo“ – não era Ray Ban
original, evidentemente, que custava 250 pilas, era daquelas cópias de 30
pilas, encontrados na barraca de camelô da esquina –, camiseta de meia preta
sem estampa, à venda em liquidação no Mercadinho das Novidades, calça jeans
preta, à venda em liquidação na Fantex, e tênis Bamba preto, à venda em
liquidação na Sapataria Clark).
O Nei Parada Dura estava
fantasiado de malandro de morro (chapéu de palhinha, camisa listrada, calça
branca de cetim e sapato bicolor).
A pista do salão era
rebaixada uns 20 centímetros em relação ao resto do piso do clube. Eu fiquei
dentro da pista de dança, os dois braços se alternando pra cima e pra baixo,
que nem uma gangorra, com os indicadores se sobressaindo no punho fechado que
nem um falo ereto. Skindô, skindô. Nei Parada Dura ficou ao meu lado, mas fora
da pista de dança.
Estávamos apenas estudando
o campo de caça e, de vez em quando, detonando uma cerveja. Tudo muito cool,
muito tranquilo, muito família. Com meia hora de baile, comecei a prestar
atenção em uma bonita havaiana que dançava de mãos dadas com um sujeito
fantasiado de palhaço Arrelia.
Ela não era muito alta – a
ponta da sua cabeça dava no meu nariz –, mas tinha uns olhos lindos, uns lábios
lindos, umas pernocas lindas e, o mais importante, uma bunda
extraordinariamente linda, que o sarongue colorido tentava inutilmente
disfarçar.
Não deviam ser namorados.
Os namorados entravam naquela confusão abraçando-se pela cintura, nunca de mãos
dadas. Quando ela passou por mim, estendi minha mão em sua direção.
Ela segurou minha mão,
apertou rapidamente, soltou e continuou dançando em círculo com o Arrelia.
Aquilo era sinal de que ela havia ido com a minha cara.
Na terceira vez que ela
passou, segurei sua mão e a puxei em minha direção. Ela soltou a mão do palhaço
e veio rindo ao meu encontro. Nos abraçamos como velhos namorados. O palhaço
veio atrás, me segurou pela camisa na altura do pescoço e se preparou para me
dar um murro.
Nei Parada Dura, que
estava observando tudo, foi mais rápido. O murro desferido pelo malandro de
morro passou raspando a minha cabeça e acertou no meio da cara do palhaço. O
tempo fechou.
O palhaço Arrelia fazia
parte de uma turma da Aparecida. Eles também haviam comprado umas dez mesas e
uns 40 ingressos. Tudo índio, tudo parente.
Uns três deles,
fantasiados de arlequins, largaram as colombinas no meio do salão e avançaram
em cima do Nei Parada Dura. A minha havaiana saiu correndo e sumiu no meio da
multidão.
Resolvi agir. A primeira
cadeirada que dei acertou nas costelas de um pirata. Um tirolês me deu um chute
na bunda, que quase me derruba. Mazinho quebrou uma garrafa de cerveja na
cabeça do tirolês. Em questão de minutos, a pancadaria ficou fora de controle.
Sici Pirangy deu um chute
violento em um Zorro e levou uma pernada por trás de um índio pele-vermelha,
que quase o derrubava. Arlindo Jorge deu um murro no meio da cara do índio
pele-vermelha, enquanto era atacado por dois pierrôs. Ricardão e Sadok saíram
cobrindo de porrada os dois pierrôs.
Luiz Lobão agarrou um
toureiro na gravata enquanto Chico Porrada se encarregava de socá-lo até a
morte. Um Homem-Aranha tentou socorrer o toureiro. Recebeu uma voadora nas
costas dada pelo Petrônio Alto.
Num momento de vacilo, em
que fui cercado por três homens da caverna, os brothers Garibaldão, Ailton
Santa Fé e Antídio Weil saíram distribuindo pernadas e socos nos vagabundos.
A gritaria das mulheres em
pânico parece que aumentava a adrenalina dos brigadores. E tome porrada.
Devo ter jogado umas dez
garrafas de cerveja na direção dos sujeitos, que se desviavam milagrosamente
enquanto as garrafas explodiam com violência nas paredes de cimento.
O estoquista Jorge
Andrade, que trabalhava comigo na Sharp, me segurou por trás tentando me tirar
da confusão. Rubem Patinete, Erivam Cabocão e Airton Caju acharam que ele
estava me agredindo, caíram em cima de nós dois e quase mataram o Jorge Andrade
de porrada.
Foi um custo explicar que
ele era meu amigo e que estava apenas tentando me proteger.
A confusão só terminou uns
dez minutos depois, com a chegada da polícia. O salão do Beasa havia se
transformado em uma terra arrasada, com metade das mesas do clube de cabeça pra
baixo, cadeiras, garrafas e copos quebrados a dar de pau, aqui e ali uma mancha
de sangue e a rica decoração do baile em frangalhos. Ninguém foi preso.
Durante a confusão, Nei
Parada Dura havia ficado sem a camisa e sua calça de malandro estava totalmente
rasgada, parecia uma saia.
Eu, ele e Jones Cunha
entramos em seu carro e fomos para o Bar Dom Quichope, lá na Praça 14, para
lamber as feridas e aguardar pelo resto da turma.
Puto da vida, Nei jogou
fora o que restava de sua calça de malandro e entrou no boteco só de cueca e
sapato bicolor.
Como eu tinha sido o pivô
involuntário da confusão, também tirei a calça e a camisa e entrei no boteco só
de cueca e tênis Bamba.
Desconfiado que só catita
encarando uma ratoeira, Jones Cunha começou a se preparar para uma nova
confusão.
O garçom que nos atendeu
não deu a mínima. Enquanto colocava as tulipas de chope na mesa e anotava os
pedidos de tira-gosto, fez uma observação:
– Você dois é que estão
certos. Com esse calor infernal que está fazendo em Manaus, só mesmo ficando de
cueca…
O resto do nosso pessoal
começou a chegar.
Dali a pouco, o Dom
Quichope havia se transformado em uma espécie de brincadeira na casa da
Doroteia. Tudo índio, tudo parente.
Ficamos lá até o dia
amanhecer, cada um fazendo questão de contar sua participação heroica naquela
batalha campal contra os homeboys da Aparecida.
E tudo aquilo por quê?…
Porque um palhaço Arrelia não quis perder sua bonita havaiana para um
headbanger fake durante um baile de fantasias.
Assim caminha a
humanidade. Giants.
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