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quinta-feira, dezembro 12, 2019

Sadok Pirangy e o destrambelhado Sidônio



Antídio Weil, Nego Walter e Sadok Pirangy no Canto do Fuxico

Agosto de 1964. No final da Rua Tefé, quase no cruzamento com a Rua Urucará, funcionava o “campinho” do Sidônio Bastos, um humilde operário da Fiação e Tecelagem de Juta Amazônia (Fitejuta), que era considerado a Meca dos peladeiros do bairro.

Na época, a Rua Tefé terminava no igarapé da Cachoeirinha, logo após a Rua Maués. A rua só foi efetivamente aberta até o bairro do Japiim no final dos anos 60. Antes, aquele trecho que vai da Rua Maués até o Conjunto 31 de Março (“Cohab-Am do Japiim”) era apenas um “caminho” de terra batida em meio a uma autêntica floresta tropical.

A pelada oficial acontecia no sábado, com o time do Sidônio entrando em campo às 15h, contra um adversário escolhido previamente para uma “partida de dez”.

Isso significa dizer que não havia tempo a ser cronometrado: ganhava quem conseguisse fazer primeiramente dez gols no adversário, durasse a partida quinze minutos ou 72 horas.

As substituições também eram inesgotáveis – qualquer pessoa podia vestir a camisa de um time e entrar em campo, na hora em que o técnico mandasse.

Era um campo de futebol society: sete na linha e um goleiro. O Cruz Alta, time do Sidônio, que ele orgulhosamente dizia ser do bairro da Raiz, estava invicto há 32 partidas.

Foi quando eles convidaram o time do Barcelona, da Cachoeirinha, que estava estreando um novo centroavante, Sadok Pirangy, um exímio driblador, brilhante cabeceador e chutador invocado.

Detalhe: Sadok, que tinha um canhão nas pernas, era ambidestro, ou seja, metia seus foguetes em direção ao arco adversário com as duas pernas.

Vista aérea da Caxuxa nos anos 50. 1. Rua Carvalho Leal (ex-Rua Camaçari).
 2. Rua Itacoatiara. 3. Rua Tefé.

Com dois minutos de jogo, Sadok recebeu uma bola de costas para o gol, fez que ia passar para o lateral, o marcador foi na onda, ele girou sobre o próprio corpo e deu uma canetada. A bola bateu com tanta força na rede que foi parar no meio campo. Barcelona 1 a 0.

Sidônio ficou visivelmente perturbado. Colocou três zagueiros para marcar o estiloso centroavante. Acabou desguarnecendo os flancos, o que é fatal no futebol-society.

Em quinze minutos, o Barcelona já estava ganhando de 3 a 0, graças a duas belas assistências de Sadok.

Sidônio entrou em desespero. Ele refez a estratégia de marcação, deixando dois jogadores colados no centroavante e o terceiro jogando na sobra, feito um líbero, para partir rápido, em contra-ataques, rumo ao gol adversário.

Também não deu certo. Com meia hora de jogo, o Barcelona já estava ganhando de 5 a 1.

Foi quando uma senhora mirradinha se aproximou da beira do campo e disparou:

– Sidônio, meu filho, hoje é o casamento do teu primo Zé Geraldo. Você é um dos padrinhos, não se esqueça! A gente tem de estar na igreja às 18h!

– Já ouvi, mãezinha, fique fria que daqui a pouco a gente vai pra igreja…

O jogo recomeçou. Sidônio conseguiu fazer uma retranca quase impossível de ser transposta, com todo mundo no campo de defesa.

O diabo é que toda vez que o Barcelona cruzava uma bola na área, o Sadok estava lá, subindo de cabeça, pra mandar pros fundos da rede.

Com duas horas de jogo, o Barcelona já estava ganhando de 6 a 2.

Foi quando a senhora mirradinha se aproximou da beira do campo pela segunda vez e disparou:

– Sidônio, meu filho, hoje é o casamento do teu primo Zé Geraldo. Você é um dos padrinhos, não se esqueça! A gente tem de estar na igreja às 18h!

– Já ouvi, mãezinha querida, fique fria que daqui a pouco a gente vai pra igreja. É só uma questão de tempo…

O jogo começou a esquentar. Qualquer sujeito com corpo de halterofilista entrava em campo pelo Cruz Alta, com a incumbência específica de quebrar as duas pernas do centroavante adversário.

Mais endiabrado do que nunca, Sadok limitava-se a tourear as vacas brabas. Um “chagão” aqui, um “chapéu” ali, e colocava alguém na cara do gol. Um massacre.

Com três horas de jogo, o Barcelona já estava ganhando de 8 a 3.

Foi quando a senhora mirradinha se aproximou da beira do campo pela terceira vez e disparou:

– Sidônio, meu filho, hoje é o casamento do teu primo Zé Geraldo. Você é um dos padrinhos, não se esqueça! A gente tem de estar na igreja às 18h! E falta quinze minutos para começar a cerimônia…

Sidônio, espumando de ódio e sentindo na pele que a invencibilidade do Cruz Alta estava indo pelo ralo, nem discutiu:

– Mamãe, vá a senhora e o Zé Geraldo pra puta que pariu! Eu quero é que aquele corno se foda! Não vou ser padrinho daquele viado, porra nenhuma! Vá se foder a senhora, o Zé Geraldo, a futura puta dele, o padre, os outros padrinhos, os convidados e a puta que pariu! Eu quero é que vocês todos se fodam e me deixem em paz! Vão tomar no cu, entendeu? Vão vocês todos tomar no olho do cu, que eu estou pouco me lixando pro caralho desse casamento de merda!

A senhora mirradinha saiu quase correndo da beira do campo e tomou chá de sumiço.

Uma hora depois, Sadok colocou uma pá de cal na disputa, depois de driblar o goleiro e fazer Barcelona 10 a 4.

O Cruz Alta acabava de perder sua invencibilidade de 32 partidas, após mais de quatro horas de disputa.

Sidônio, agora apelidado de “Boca de Privada”, queria sangue.

O bate-boca entre ele e sua genitora acabou sendo o principal assunto durante a recepção do casamento do primo.

O certo é que daquele dia em diante o Zé Geraldo nunca mais voltou a falar com o Sidônio Boca de Privada.

Aquele tipo de xingamento não se diz em público, ainda mais na frente de estranhos.

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