Antídio Weil, Nego Walter e Sadok Pirangy no Canto do Fuxico
Agosto de 1964. No final
da Rua Tefé, quase no cruzamento com a Rua Urucará, funcionava o “campinho” do
Sidônio Bastos, um humilde operário da Fiação e Tecelagem de Juta Amazônia
(Fitejuta), que era considerado a Meca dos peladeiros do bairro.
Na época, a Rua Tefé
terminava no igarapé da Cachoeirinha, logo após a Rua Maués. A rua só foi
efetivamente aberta até o bairro do Japiim no final dos anos 60. Antes, aquele
trecho que vai da Rua Maués até o Conjunto 31 de Março (“Cohab-Am do Japiim”)
era apenas um “caminho” de terra batida em meio a uma autêntica floresta
tropical.
A pelada oficial acontecia
no sábado, com o time do Sidônio entrando em campo às 15h, contra um adversário
escolhido previamente para uma “partida de dez”.
Isso significa dizer que
não havia tempo a ser cronometrado: ganhava quem conseguisse fazer
primeiramente dez gols no adversário, durasse a partida quinze minutos ou 72
horas.
As substituições também
eram inesgotáveis – qualquer pessoa podia vestir a camisa de um time e entrar
em campo, na hora em que o técnico mandasse.
Era um campo de futebol
society: sete na linha e um goleiro. O Cruz Alta, time do Sidônio, que ele
orgulhosamente dizia ser do bairro da Raiz, estava invicto há 32 partidas.
Foi quando eles convidaram
o time do Barcelona, da Cachoeirinha, que estava estreando um novo
centroavante, Sadok Pirangy, um exímio driblador, brilhante cabeceador e
chutador invocado.
Detalhe: Sadok, que tinha
um canhão nas pernas, era ambidestro, ou seja, metia seus foguetes em direção
ao arco adversário com as duas pernas.
Vista aérea da Caxuxa nos anos 50. 1. Rua Carvalho Leal (ex-Rua
Camaçari).
2. Rua Itacoatiara. 3. Rua Tefé.
Com dois minutos de jogo,
Sadok recebeu uma bola de costas para o gol, fez que ia passar para o lateral,
o marcador foi na onda, ele girou sobre o próprio corpo e deu uma canetada. A
bola bateu com tanta força na rede que foi parar no meio campo. Barcelona 1 a
0.
Sidônio ficou visivelmente
perturbado. Colocou três zagueiros para marcar o estiloso centroavante. Acabou
desguarnecendo os flancos, o que é fatal no futebol-society.
Em quinze minutos, o
Barcelona já estava ganhando de 3 a 0, graças a duas belas assistências de
Sadok.
Sidônio entrou em
desespero. Ele refez a estratégia de marcação, deixando dois jogadores colados
no centroavante e o terceiro jogando na sobra, feito um líbero, para partir
rápido, em contra-ataques, rumo ao gol adversário.
Também não deu certo. Com
meia hora de jogo, o Barcelona já estava ganhando de 5 a 1.
Foi quando uma senhora
mirradinha se aproximou da beira do campo e disparou:
– Sidônio, meu filho, hoje
é o casamento do teu primo Zé Geraldo. Você é um dos padrinhos, não se esqueça!
A gente tem de estar na igreja às 18h!
– Já ouvi, mãezinha, fique
fria que daqui a pouco a gente vai pra igreja…
O jogo recomeçou. Sidônio
conseguiu fazer uma retranca quase impossível de ser transposta, com todo mundo
no campo de defesa.
O diabo é que toda vez que
o Barcelona cruzava uma bola na área, o Sadok estava lá, subindo de cabeça, pra
mandar pros fundos da rede.
Com duas horas de jogo, o
Barcelona já estava ganhando de 6 a 2.
Foi quando a senhora
mirradinha se aproximou da beira do campo pela segunda vez e disparou:
– Sidônio, meu filho, hoje
é o casamento do teu primo Zé Geraldo. Você é um dos padrinhos, não se esqueça!
A gente tem de estar na igreja às 18h!
– Já ouvi, mãezinha
querida, fique fria que daqui a pouco a gente vai pra igreja. É só uma questão
de tempo…
O jogo começou a
esquentar. Qualquer sujeito com corpo de halterofilista entrava em campo pelo
Cruz Alta, com a incumbência específica de quebrar as duas pernas do
centroavante adversário.
Mais endiabrado do que
nunca, Sadok limitava-se a tourear as vacas brabas. Um “chagão” aqui, um
“chapéu” ali, e colocava alguém na cara do gol. Um massacre.
Com três horas de jogo, o
Barcelona já estava ganhando de 8 a 3.
Foi quando a senhora
mirradinha se aproximou da beira do campo pela terceira vez e disparou:
– Sidônio, meu filho, hoje
é o casamento do teu primo Zé Geraldo. Você é um dos padrinhos, não se esqueça!
A gente tem de estar na igreja às 18h! E falta quinze minutos para começar a
cerimônia…
Sidônio, espumando de ódio
e sentindo na pele que a invencibilidade do Cruz Alta estava indo pelo ralo,
nem discutiu:
– Mamãe, vá a senhora e o
Zé Geraldo pra puta que pariu! Eu quero é que aquele corno se foda! Não vou ser
padrinho daquele viado, porra nenhuma! Vá se foder a senhora, o Zé Geraldo, a
futura puta dele, o padre, os outros padrinhos, os convidados e a puta que
pariu! Eu quero é que vocês todos se fodam e me deixem em paz! Vão tomar no cu,
entendeu? Vão vocês todos tomar no olho do cu, que eu estou pouco me lixando
pro caralho desse casamento de merda!
A senhora mirradinha saiu
quase correndo da beira do campo e tomou chá de sumiço.
Uma hora depois, Sadok
colocou uma pá de cal na disputa, depois de driblar o goleiro e fazer Barcelona
10 a 4.
O Cruz Alta acabava de
perder sua invencibilidade de 32 partidas, após mais de quatro horas de
disputa.
Sidônio, agora apelidado
de “Boca de Privada”, queria sangue.
O bate-boca entre ele e
sua genitora acabou sendo o principal assunto durante a recepção do casamento
do primo.
O certo é que daquele dia
em diante o Zé Geraldo nunca mais voltou a falar com o Sidônio Boca de Privada.
Aquele tipo de xingamento
não se diz em público, ainda mais na frente de estranhos.
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