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sábado, dezembro 14, 2019

Barrado no baile



Carnaval de clube já foi uma delícia, zifio!

Morador de uma casa de dois andares localizada na Rua Borba canto com a Rua Tefé, na Cachoeirinha, o vereador Francisco Corrêa Lima era casado com dona Aldi, irmã de dona Amariles, mãe da Solange, Sôngila e Sidão Ribeiro, e irmã de dona Aidil, mãe do Helder, Nádia e Omar Filho (“Tutu”). Tudo índio, tudo parente.

O casal não teve filhos naturais, mas adotou dois moleques que valiam por dez.

O mais velho, Afrânio (aka “Eusébio”, porque era apaixonado pelo atacante português), era viciado em jogos de futebol de mesa e de calçada.

Ele possuía dezenas de times de celotex e de caroços de tucumã. Com um agravante: Afrânio era tão fanático pela brincadeira que, quando seu time favorito, o Benfica, entrava em campo, o doido fazia uma infernal queima de fogos de artifícios no pátio da residência, que assustava a vizinhança inteira.

O doido também jogava as partidas de celotex irradiando o jogo (“Ataca o esquadrão lusitano com o armador Mário Coluna. Mário Coluna tocou para José Águas. José Águas tocou para Eusébio. O centroavante se livra de dois marcadores. Se aproxima da grande área. Apontou, vai chutar, chutou, é gooooooollllllll!”. E haja catolés explodindo na residência).

Das 300 partidas que disputamos, ele deve ter ganho umas 20, no máximo. Mas acreditava ser um dos melhores jogadores do bairro.

O mais novo, Aldifran, assim que completou 13 anos de idade, se transformou no maior fabricante de “cheirinho da loló” da Cachoeirinha.

Vinha gente dos quatro cantos da cidade adquirir sua obra-prima (“É melhor do que o lança-perfume Rodouro”, asseguravam os cafungadores).

O bioquímico diletante fabricava o produto sob encomenda e nunca ensinou a fórmula para ninguém. Abandonou a brincadeira em 1987 e foi trabalhar no serviço público, onde está até hoje.

O certo é que quando, esporadicamente, eu encontrava o distinto vereador caminhando pelas ruas do bairro, o cumprimentava civilizadamente:

– Bom-dia, Dr. Corrêa Lima. Como vai a dona Aldi?…

– Bom-dia, meu rapaz. A Aldi vai bem, vai muito bem, obrigado! – ele devolvia, sempre sorridente, como todo bom político.

No carnaval de 1974, nós resolvemos furar a entrada do “Baile do Pierrô”, no Clube Municipal, cujo presidente, salvo engano, era o referido vereador Corrêa Lima.

Se desse alguma bronca, era só citar o nome do ilustre morador da Cachoeirinha que, em passado não tão remoto assim, de vez em quando assumia a prefeitura de Manaus nas eventuais ausências do prefeito Paulo Nery.

Naquela época, o governador nomeava o prefeito das capitais e não havia vice-prefeito.

O cargo de vice-prefeito era exercido pelo presidente da CMM.

Naquela época, Corrêa Lima era presidente do legislativo municipal.

Na modalidade “invasão de peito aberto” em carnavais, que era a nossa favorita, a primeira tarefa era escolher o “coelho”, ou seja, o cara que vai pro sacrifício de ser pego pelos seguranças (sim, eles precisavam mostrar serviço!), para que o resto da turma possa se escafeder no meio da multidão e entrar no clube.

Pelo grau de intimidade que eu suspeitava ter com o vereador Corrêa Lima, me escalei para a tarefa.

A gente se posicionou em um terreno baldio nos fundos da sede campestre.

O truque era simples e ordinário: algum sangue-bom que já estivesse dentro do clube iria desligar a chave geral.

Com aquela momentânea escuridão de breu, era só passar pela cerca de arame farpado que separava o terreno do clube do terreno baldio e embicar em direção ao fuzuê na maior correria da paróquia.

A operação toda tinha de ser realizada em menos de três minutos, que era o tempo máximo necessário para um prestativo segurança religar a chave geral.

Dito e feito.

No momento em que a luz voltou, iluminando nossa rota de fuga em direção ao clube, três seguranças me encaixotaram.

O resto da moçada conseguiu desaparecer no meio do salão.

Antes que os brutamontes começassem a me espancar, gritei as palavras mágicas:

– Se um de vocês me bater, vai ser demitido da Câmara Municipal de Manaus agora mesmo. Eu sou sobrinho do Dr. Corrêa Lima, presidente da Câmara…

Os seguranças se entreolharam meio desconfiados, torceram um de meus braços para trás e resolveram confirmar a informação.

O vereador estava em uma mesa do clube, cercado de aspones e piriguetes de vários calibres, tomando todas. Já devia estar pra lá de Marrakesh.

Entrei no recinto escoltado pelos seguranças. Diante da mesa, abri o verbo:

– Dr. Corrêa Lima, o senhor não é meu tio?…

Ele me encarou com seus olhos mortiços de um biriteiro em estado terminal e disparou:

– Não sou não, meu filho, não sou não!… Aliás, eu nem lhe conheço…

Os seguranças me colocaram pra fora do clube na base do pescoção. Um ultraje a rigor!

É evidente que depois desse dia eu nunca mais cumprimentei o vereador Corrêa Lima nem mesmo quando o encontrava no velório de algum conhecido.

E, dois anos depois, quando votei pela primeira vez para vereador, cravei o nome do Fábio Lucena na cédula eleitoral.

O nobre edil Corrêa Lima perdeu a reeleição e nunca mais foi eleito nem para síndico de massa falida.

A vingança é um prato que se come frio.

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