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sexta-feira, dezembro 13, 2019

O dia em que o Edlúcio fez o Dr. Roberto Marinho botar um ovo em pé



O videomaker Edlúcio Castro e sua avó Inês Aryce de Castro

Dezembro de 1993. Ainda saboreando o estrondoso sucesso do primeiro programa interativo da tevê brasileira (“Você Decide!”, então em sua segunda temporada), a rede Globo de Televisão resolveu apresentar o episódio nº 30 (“Ídolo Perdido”) diretamente de Manaus. O circo foi armado na Praça São Sebastião, em frente ao Teatro Amazonas.

Filho da funcionária pública Marilúcia Castro e sobrinho do jornalista Mário Adolfo, na época secretário municipal de Comunicação, o hoje publicitário e videomaker Edlúcio Castro, na flor de seus 20 anos, estava dando os primeiros passos na profissão e trabalhava na Oana Publicidade como responsável pela TV Fiscal da agência.

Enfurnado em um cubículo no porão da agência, seu trabalho era passar o dia assistindo, gravando e identificando todos os programas televisivos da taba para documentar os crimes de calúnia, difamação e injúrias cometidos diariamente contra o recém-eleito prefeito de Manaus Amazonino Mendes – na época, quase um modismo institucionalizado entre os intrépidos apresentadores locais.

No começo da noite daquela quinta-feira, dia em que o programa “Você Decide” era exibido, Edlúcio estava copiando uma fita VHS do clássico filme “Behind The Green Door” (“Atrás da Porta Verde”), com a esfuziante Marylin Chambers (ela parecia com a Cybil Shepherd, a “gata” do seriado “A Gata e o Rato”. Se você tem menos de 45 anos, não sabe o que perdeu!), quando sua concentração no pardieiro foi rudemente interrompida.

Repórteres especiais da Secretaria Municipal de Comunicação, Marcelo Dutra e Jô Farah, que na época engordavam seus magros salários realizando alguns “jabaculês” para os políticos da base aliada do prefeito, ficaram invocados em ver que Edlúcio ainda estava trabalhando na agência – o que, tecnicamente, os impediria de preparar o “jabá com cebolas” tradicional.

– Bicho, negócio seguinte: amanhã cedo eu vou falar pro Edson Gil que você fica aqui até tarde da noite, gastando as fitas da agência! – disparou Marcelo Dutra, sem disfarçar a irritação.

Edlúcio, que sempre foi um moleque abusado, devolveu no mesmo tom.

– Rapaz, você pode falar o que quiser até pro caralho! Eu estou aqui finalizando uma fita em que o Nonato Oliveira chama o prefeito Amazonino de ladrão, contrabandista e passador de cheques sem fundos! E só estou perdendo tempo até agora porque tenho o maior respeito pelo prefeito… Eu já devia estar na Praça São Sebastião participando do “Você Decide!” para ganhar o carro importado da rádio Transamérica...

O jornalista Marcelo Dutra, ex-secretário estadual de Meio Ambiente

Percebendo que o prosaico jabá com cebolas poderia se transformar em uma fornida paella valenciana, os dois repórteres ficaram vivamente interessados pelo assunto. Edlúcio explicou do que se tratava. De acordo com a rádio, a maior presepada feita em nível nacional utilizando o bordão “Eu sou louco pela Transamérica!” daria ao autor da façanha um carro importado, avaliado em 50 mil dólares.

Edlúcio também explicou que não seria uma tarefa fácil. Um sujeito já havia desfilado pela Avenida Atlântica, em Copacabana, com a mulher totalmente pelada e apenas tendo o logotipo da rádio Transamérica pintado sobre a xereca. Quase parou o trânsito.

Outro havia descido de paraquedas na final do campeonato paulista, entre Palmeiras e São Paulo, no estádio do Morumbi, interrompendo a partida e exibindo no paraquedas o logotipo da rádio Transamérica. Quase que as arquibancadas se transformavam em palco de uma batalha campal.

Pelo regulamento da promoção, as presepadas deveriam ser filmadas (ainda não existia essa moleza de celular com filmadora) e enviadas para o estúdio da rádio, em São Paulo. Uma comissão de notáveis escolheria o maior golpe de marketing do ano.

Na maior cara de pau que só um moleque de 20 anos pode ter, Edlúcio explicou que estava programando os equipamentos da agência para filmarem sua participação no “Você Decide!”, declarando seu amor pela emissora. Ninguém nunca tinha tentado aquilo antes. Com a menina dos olhos quase se transformando em cifrões, Marcelo Dutra e Joh Farah compraram instantaneamente a ideia do jovem publicitário:

– E que merda você ainda está fazendo aqui na Oana? Vamos lá pra praça, porra, que nós já estamos atrasados! – intimou Marcelo Dutra.

Os três embarcaram no carro do Jô Farah e se mandaram. Como havia uma multidão no entorno da Praça de São Sebastião, Jô Farah resolveu estacionar o carro na Avenida Eduardo Ribeiro, em frente ao Ideal Clube, no cruzamento da Rua Monsenhor Coutinho com a Rua Tapajós:

– Desce do carro e te manda, porra! Daqui a pouco, a gente se encontra lá no local do crime – avisou Jô Farah pro Edlúcio.

Boa-pinta ao ponto de ser confundido com os artistas da rede Globo, Edlúcio saiu abrindo caminho entre a multidão, distribuindo beijinhos, autógrafos, apertos de mão e abraços, até se aproximar do cercadinho de corda que separava os “pagantes” (os futuros entrevistados) dos “pipocas” (a imensa turba de mortais comuns) naquele bloco carnavalesco da Vênus Platinada.

Sem se perturbar, ele levantou a corda, passou para dentro da área VIP e saiu caminhando tranquilamente em direção ao que, supostamente, seriam as pessoas escolhidas pelo programa para darem suas opiniões ao vivo.

Uma bichinha de cabelos compridos e cavanhaque (provavelmente o produtor do programa), portando uma prancheta em que anotava coisas indecifráveis, se aproximou do intruso, irritadíssima, nervosíssima, afetadíssima e disparou:

– Que merda você está fazendo aqui dentro, ô palhaço?

Imperturbável como sempre, Edlúcio colocou uma das mãos sobre o ombro da bichinha e, na maior calma do mundo, disparou:

– Quem me mandou vir pra cá foi aquele cidadão ali. Vai lá e conversa com ele…

E apontou para o empresário Philipe Daou, dono da TV Amazonas, responsável pela transmissão da rede Globo em Manaus, que, alheio a tudo e a todos, conversava animadamente com a jornalista Elaine Ramos.

A bichinha quase enfartou. Aí, se recompondo, posicionou Edlúcio ao lado do empresário Zeca Nascimento, que já havia sido pautado para dar sua opinião. O aprendiz de publicitário sentiu que estava na fita.

A trama do episódio “Ídolo Perdido” era de uma bovinice atroz. Um ídolo juvenil (Fábio Jr.), em excursão pelo interior do país, sofre um acidente de carro. Ele é encontrado por uma fã (Silvia Buarque), que o trata com carinho. Ele não sabe quem é. Ela sabe. A questão era a seguinte: Silvia Buarque deveria contar a Fábio Jr. quem ele era antes do acidente ou era preferível ela ficar calada e dar continuidade ao romance entre os dois, já que ele estava enormemente satisfeito com a nova vida.

A apresentadora e atriz Virgínia Novick

Responsável pelas entrevistas, a apresentadora Virgínia Novick começou a passar o texto com os escolhidos. Pros machos, a pergunta era a seguinte: “E se em vez do Fábio Jr. fosse a Vera Fischer?…”

A resposta tinha que ser alguma coisa na linha “Ah, eu não contaria nada para ser feliz com ela o resto da vida” ou “Ah, eu contaria tudo porque o amor é lindo e se ela tivesse de ficar comigo seria por livre e espontânea vontade”.

Empolgado com a resposta sugerida pela apresentadora, Edlúcio resolveu embolar o meio-campo:

– Eu vou dizer que não contaria nada pra Vera Fischer, para ficar com ela pro resto da vida, mas também diria que preferia ficar com você, Virginia Novick, porque você é uma tremenda gata!

Virginia Novick não gostou da resposta improvisada e, exigindo mais respeito, vetou a participação daquele cabeludo meio abusado.

Imprensados no meio dos “pipocas”, Marcelo Dutra e Jô Farah perceberam o que havia acontecido e começaram a sinalizar pro Edlúcio naquele código universal do “top top”, certos de que ele tinha se fodido. Edlúcio ficou na dele.

Estava se aproximando o último bloco, quando a apresentadora Virginia Novick se aproximou de Zeca Nascimento para repassar o texto pela milésima vez. Edlúcio comentou em voz alta:

– Com trinta mulheres pra cada homem aqui em Manaus, duvido que elas não ficassem com o Fábio Jr. sem contar nada do seu passado… Ele, também, se viesse aqui, não ia nem querer ser descoberto… As amazonenses são loucas por ele…

Ouvindo aquilo, Virginia Novick se aproximou do aprendiz de feiticeiro:

– Você consegue repetir isso sem gaguejar? – indagou a apresentadora.

– Na hora! – devolveu Edlúcio.

No último bloco, Virginia Novick fez a pergunta combinada pra Zeca Nascimento e ele respondeu do jeito combinado. Satisfeita, ela se aproximou do Edlúcio e fez a mesma pergunta. O cabeludo não negou fogo e, falando para todo o Brasil (o programa atingia 63% de audiência), mandou ver:

– Com trinta mulheres pra cada homem aqui em Manaus, duvido que elas não ficassem com o Fábio Jr. sem contar nada do seu passado… Ele, também, se viesse aqui, não ia nem querer ser descoberto… As amazonenses são loucas por ele… Mas eu sou louco mesmo é pela Transamérica!

Como o som ambiente era cortado (as pessoas em casa só ouviam a voz da apresentadora e a do sujeito que dava a resposta), a turba rude e ignara não notou o que havia acontecido porque o barulho na praça era realmente ensurdecedor.

O hoje ativista ambiental Jô Farah em companhia de seus pais

Edlúcio só percebeu o tamanho da encrenca quando viu a Virginia Novick quase arrancar os cabelos e depois se jogar no chão, gemendo feito uma bezerra desmamada.

A bichinha produtora entrou em surto psicótico:

– Prende esse filho da puta, prende esse filho da puta! – determinou para um meganha, que fazia a segurança do cercadinho de corda.

O soldado explicou que não podia deixar o posto.

Enlouquecida, a bichinha produtora saiu em busca do comandante da PM, coronel Lemos, e explicou a situação. Uns seis meganhas agarraram Edlúcio.

Imperturbável como sempre, Edlúcio colocou uma das mãos sobre o ombro do coronel e, na maior calma do mundo, disparou:

– Coronel, eu apenas dei a minha opinião… Eles me pediram para falar e eu falei… Foi apenas isso!

Edlúcio foi liberado pelos meganhas. Na mesma hora, Marcelo Dutra e Jô Farah entraram no cercadinho para fazer “o resgate do soldado Bryan”. Como estavam posicionados próximos ao carro de transmissão, eles ouviram quando o temperamental José Bonifácio Sobrinho, o Boni, diretor-geral da rede Globo, demitiu a bichinha produtora do programa, ao vivo e a cores, sob uma saraivada de palavrões.

– Te manda lá pro Ideal e fica dentro do carro, que isso aqui vai feder a chifre queimado! – determinou Jô Farah, entregando a chave do carro pra Edlúcio.

Demitida via Embratel pelo todo-poderoso Boni, a bichinha produtora já havia jogado a prancheta na direção da cabeça de Edlúcio e agora estava procurando um trinta e oito com balas dundum para descarregar no meio do quengo daquele cabeludo abusado.

Com o coração quase saindo pela boca, Edlúcio saiu correndo em direção à Avenida Eduardo Ribeiro, atropelando todo mundo, desesperado como um vampiro diante de uma réstia de alho.

A apresentadora Virginia Novick, soltando faísca pelos olhos, começou a incentivar os presentes a darem uma surra naquele sujeito impertinente que havia transformado Manaus na capital nacional da infâmia. A Praça de São Sebastião estava prestes a se transformar em uma praça de guerra.

Dentro do carro, mais nervoso do que nunca, Edlúcio sintonizou a rádio Jovem Pan. No mesmo instante, um locutor interrompeu a música “Rhythm Is A Dancer”, do Snap!, para dar uma informação:

– Porra, moçada, um boyzinho lá de Manaus acabou de fazer o doutor Roberto Marinho botar um ovo em pé… No bloco final do programa “Você Decide!”, o cara meteu lá que é louco pela Transamérica, pra todo Brasil escutar… Ô lôko, meu!… Nunca mais a Globo vai fazer programa ao vivo em Manaus… Isso, se o doutor Roberto Marinho sobreviver a essa sacanagem sem precedentes… Que muitas cabeças vão rolar na emissora, não há a menor dúvida… Aliás, se a Transamérica precisasse fazer um comercial desses, no mesmo programa, em nível nacional, ia gastar uns 10 milhões de dólares… Ô lôko, meu!… O boyzinho é da pesada!

Edlúcio começou a achar que havia se fodido. Quando Marcelo Dutra e Jô Farah entraram no carro, seu “achismo” se transformou em certeza absoluta.

– Porra, bicho, o pessoal da TV Amazonas está uma arara. E eles são os principais parceiros do prefeito Amazonino Mendes. Não sei não, mas acho que só vai dar pro teu cu! – avaliou Marcelo Dutra.

Eu e a publicitária Liduina Mendes enchendo a cara em um boteco de Coari

No dia seguinte, no refeitório da Oana, Edlúcio começou a ser tratado como um cão leproso. Ficou sentado sozinho em uma mesa.

Redatora premiada e uma das mais talentosas escritoras da cidade, a publicitária Liduína Mendes se sentou à sua mesa e disparou:

– Porra, moleque, você ontem botou lascando! Foi o melhor golpe publicitário que já vi na minha vida… Parabéns!

Edlúcio, meio constrangido, limitou-se a rir amarelo.

Dez minutos depois, Edson Sena, o encarregado de mídia da agência, sentou-se à mesa:

– Edlúcio, cara, você é um grande filho da puta! Sacaneou com a TV Amazonas, nossa principal parceira… Fez uma desfeita daquela em nível nacional… Já pedi a tua cabeça pro Edmar Costa… Você só faz merda, porra!…

Edlúcio, meio constrangido, limitou-se a rir amarelo.

Liduína saiu em defesa do moleque:

– Escuta aqui, bicho, você trabalha com mídia, mas não deve entender porra nenhuma de publicidade… O que o Edlúcio fez ontem foi um escândalo, foi um escândalo!… Ele colocou o nome da Transamérica na casa de 80 milhões de pessoas… Foi um golpe de marketing incrível…

Irritadíssimo, Edson Sena se levantou da mesa e foi degustar seu café da manhã em outro canto. Edlúcio, meio constrangido, limitou-se a rir amarelo e, algum tempo depois, já estava encafifado no seu mocó.

De repente, chega a secretária do Edson Gil, um dos diretores da agência, informando que ele exigia a presença de Edlúcio na sua sala. Nervosíssimo e acreditando piamente que iria receber sua carta de demissão, Edlúcio entra na sala:

– Pois não, doutor Edson!

– Edlúcio, esse aqui é o doutor Alberto Santa Rosa, presidente do Açúcar Itamarati, e esse aqui é o doutor Jaime Belizário, presidente da indústria de Brinquedos Estrela! – avisou Edson Gil.

Aí, se virando para os dois senhores, mais pimpão do que nunca, arrematou:

– Pessoal esse aí é o nosso funcionário Edlúcio Castro, que ontem à noite aplicou um belo golpe de marketing na poderosa rede Globo. Ok, Edlúcio, pode ir embora!

Edlúcio saiu da sala achando que seu emprego estava salvo. Dessa vez, acertou na mosca – tanto que permaneceu na agência até dezembro de 1995, quando partiu em busca de novos horizontes.

Infelizmente, ele não ganhou o carro da promoção. O DJ Raidi Rebelo, responsável pela emissora em Manaus, demorou a enviar a fita VHS para a matriz em São Paulo e, quando sua façanha chegou, as inscrições já haviam sido encerradas.

O carro importado foi dado para uma banda de rock que excursionava pelo país com todos os instrumentos pintados com o logotipo da emissora, incluindo o ônibus que transportava os músicos.

Ninguém se lembra mais do nome da banda, mas quem assistiu ao episódio “Ídolo Perdido” não esqueceu até hoje da presepada do Edlúcio Castro. Você decide.

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