O videomaker Edlúcio Castro e sua avó Inês Aryce de Castro
Dezembro de 1993. Ainda
saboreando o estrondoso sucesso do primeiro programa interativo da tevê
brasileira (“Você Decide!”, então em sua segunda temporada), a rede Globo de
Televisão resolveu apresentar o episódio nº 30 (“Ídolo Perdido”) diretamente de
Manaus. O circo foi armado na Praça São Sebastião, em frente ao Teatro
Amazonas.
Filho da funcionária
pública Marilúcia Castro e sobrinho do jornalista Mário Adolfo, na época
secretário municipal de Comunicação, o hoje publicitário e videomaker Edlúcio
Castro, na flor de seus 20 anos, estava dando os primeiros passos na profissão
e trabalhava na Oana Publicidade como responsável pela TV Fiscal da agência.
Enfurnado em um cubículo
no porão da agência, seu trabalho era passar o dia assistindo, gravando e
identificando todos os programas televisivos da taba para documentar os crimes
de calúnia, difamação e injúrias cometidos diariamente contra o recém-eleito
prefeito de Manaus Amazonino Mendes – na época, quase um modismo
institucionalizado entre os intrépidos apresentadores locais.
No começo da noite daquela
quinta-feira, dia em que o programa “Você Decide” era exibido, Edlúcio estava
copiando uma fita VHS do clássico filme “Behind The Green Door” (“Atrás da
Porta Verde”), com a esfuziante Marylin Chambers (ela parecia com a Cybil
Shepherd, a “gata” do seriado “A Gata e o Rato”. Se você tem menos de 45 anos,
não sabe o que perdeu!), quando sua concentração no pardieiro foi rudemente
interrompida.
Repórteres especiais da
Secretaria Municipal de Comunicação, Marcelo Dutra e Jô Farah, que na época
engordavam seus magros salários realizando alguns “jabaculês” para os políticos
da base aliada do prefeito, ficaram invocados em ver que Edlúcio ainda estava
trabalhando na agência – o que, tecnicamente, os impediria de preparar o “jabá
com cebolas” tradicional.
– Bicho, negócio seguinte:
amanhã cedo eu vou falar pro Edson Gil que você fica aqui até tarde da noite,
gastando as fitas da agência! – disparou Marcelo Dutra, sem disfarçar a
irritação.
Edlúcio, que sempre foi um
moleque abusado, devolveu no mesmo tom.
– Rapaz, você pode falar o
que quiser até pro caralho! Eu estou aqui finalizando uma fita em que o Nonato
Oliveira chama o prefeito Amazonino de ladrão, contrabandista e passador de
cheques sem fundos! E só estou perdendo tempo até agora porque tenho o maior
respeito pelo prefeito… Eu já devia estar na Praça São Sebastião participando
do “Você Decide!” para ganhar o carro importado da rádio Transamérica...
O jornalista Marcelo Dutra, ex-secretário estadual de Meio Ambiente
Percebendo que o prosaico
jabá com cebolas poderia se transformar em uma fornida paella valenciana, os
dois repórteres ficaram vivamente interessados pelo assunto. Edlúcio explicou
do que se tratava. De acordo com a rádio, a maior presepada feita em nível
nacional utilizando o bordão “Eu sou louco pela Transamérica!” daria ao autor
da façanha um carro importado, avaliado em 50 mil dólares.
Edlúcio também explicou
que não seria uma tarefa fácil. Um sujeito já havia desfilado pela Avenida
Atlântica, em Copacabana, com a mulher totalmente pelada e apenas tendo o
logotipo da rádio Transamérica pintado sobre a xereca. Quase parou o trânsito.
Outro havia descido de
paraquedas na final do campeonato paulista, entre Palmeiras e São Paulo, no
estádio do Morumbi, interrompendo a partida e exibindo no paraquedas o logotipo
da rádio Transamérica. Quase que as arquibancadas se transformavam em palco de
uma batalha campal.
Pelo regulamento da
promoção, as presepadas deveriam ser filmadas (ainda não existia essa moleza de
celular com filmadora) e enviadas para o estúdio da rádio, em São Paulo. Uma
comissão de notáveis escolheria o maior golpe de marketing do ano.
Na maior cara de pau que
só um moleque de 20 anos pode ter, Edlúcio explicou que estava programando os
equipamentos da agência para filmarem sua participação no “Você Decide!”,
declarando seu amor pela emissora. Ninguém nunca tinha tentado aquilo antes.
Com a menina dos olhos quase se transformando em cifrões, Marcelo Dutra e Joh
Farah compraram instantaneamente a ideia do jovem publicitário:
– E que merda você ainda
está fazendo aqui na Oana? Vamos lá pra praça, porra, que nós já estamos
atrasados! – intimou Marcelo Dutra.
Os três embarcaram no
carro do Jô Farah e se mandaram. Como havia uma multidão no entorno da Praça de
São Sebastião, Jô Farah resolveu estacionar o carro na Avenida Eduardo Ribeiro,
em frente ao Ideal Clube, no cruzamento da Rua Monsenhor Coutinho com a Rua
Tapajós:
– Desce do carro e te manda,
porra! Daqui a pouco, a gente se encontra lá no local do crime – avisou Jô
Farah pro Edlúcio.
Boa-pinta ao ponto de ser
confundido com os artistas da rede Globo, Edlúcio saiu abrindo caminho entre a
multidão, distribuindo beijinhos, autógrafos, apertos de mão e abraços, até se
aproximar do cercadinho de corda que separava os “pagantes” (os futuros
entrevistados) dos “pipocas” (a imensa turba de mortais comuns) naquele bloco
carnavalesco da Vênus Platinada.
Sem se perturbar, ele
levantou a corda, passou para dentro da área VIP e saiu caminhando
tranquilamente em direção ao que, supostamente, seriam as pessoas escolhidas
pelo programa para darem suas opiniões ao vivo.
Uma bichinha de cabelos
compridos e cavanhaque (provavelmente o produtor do programa), portando uma
prancheta em que anotava coisas indecifráveis, se aproximou do intruso,
irritadíssima, nervosíssima, afetadíssima e disparou:
– Que merda você está
fazendo aqui dentro, ô palhaço?
Imperturbável como sempre,
Edlúcio colocou uma das mãos sobre o ombro da bichinha e, na maior calma do
mundo, disparou:
– Quem me mandou vir pra
cá foi aquele cidadão ali. Vai lá e conversa com ele…
E apontou para o
empresário Philipe Daou, dono da TV Amazonas, responsável pela transmissão da
rede Globo em Manaus, que, alheio a tudo e a todos, conversava animadamente com
a jornalista Elaine Ramos.
A bichinha quase enfartou.
Aí, se recompondo, posicionou Edlúcio ao lado do empresário Zeca Nascimento,
que já havia sido pautado para dar sua opinião. O aprendiz de publicitário
sentiu que estava na fita.
A trama do episódio “Ídolo
Perdido” era de uma bovinice atroz. Um ídolo juvenil (Fábio Jr.), em excursão
pelo interior do país, sofre um acidente de carro. Ele é encontrado por uma fã
(Silvia Buarque), que o trata com carinho. Ele não sabe quem é. Ela sabe. A
questão era a seguinte: Silvia Buarque deveria contar a Fábio Jr. quem ele era
antes do acidente ou era preferível ela ficar calada e dar continuidade ao
romance entre os dois, já que ele estava enormemente satisfeito com a nova
vida.
A apresentadora e atriz Virgínia Novick
Responsável pelas
entrevistas, a apresentadora Virgínia Novick começou a passar o texto com os
escolhidos. Pros machos, a pergunta era a seguinte: “E se em vez do Fábio Jr.
fosse a Vera Fischer?…”
A resposta tinha que ser
alguma coisa na linha “Ah, eu não contaria nada para ser feliz com ela o resto
da vida” ou “Ah, eu contaria tudo porque o amor é lindo e se ela tivesse de
ficar comigo seria por livre e espontânea vontade”.
Empolgado com a resposta
sugerida pela apresentadora, Edlúcio resolveu embolar o meio-campo:
– Eu vou dizer que não
contaria nada pra Vera Fischer, para ficar com ela pro resto da vida, mas
também diria que preferia ficar com você, Virginia Novick, porque você é uma
tremenda gata!
Virginia Novick não gostou
da resposta improvisada e, exigindo mais respeito, vetou a participação daquele
cabeludo meio abusado.
Imprensados no meio dos
“pipocas”, Marcelo Dutra e Jô Farah perceberam o que havia acontecido e
começaram a sinalizar pro Edlúcio naquele código universal do “top top”, certos
de que ele tinha se fodido. Edlúcio ficou na dele.
Estava se aproximando o
último bloco, quando a apresentadora Virginia Novick se aproximou de Zeca
Nascimento para repassar o texto pela milésima vez. Edlúcio comentou em voz
alta:
– Com trinta mulheres pra
cada homem aqui em Manaus, duvido que elas não ficassem com o Fábio Jr. sem
contar nada do seu passado… Ele, também, se viesse aqui, não ia nem querer ser
descoberto… As amazonenses são loucas por ele…
Ouvindo aquilo, Virginia
Novick se aproximou do aprendiz de feiticeiro:
– Você consegue repetir
isso sem gaguejar? – indagou a apresentadora.
– Na hora! – devolveu
Edlúcio.
No último bloco, Virginia
Novick fez a pergunta combinada pra Zeca Nascimento e ele respondeu do jeito
combinado. Satisfeita, ela se aproximou do Edlúcio e fez a mesma pergunta. O
cabeludo não negou fogo e, falando para todo o Brasil (o programa atingia 63%
de audiência), mandou ver:
– Com trinta mulheres pra
cada homem aqui em Manaus, duvido que elas não ficassem com o Fábio Jr. sem
contar nada do seu passado… Ele, também, se viesse aqui, não ia nem querer ser
descoberto… As amazonenses são loucas por ele… Mas eu sou louco mesmo é pela
Transamérica!
Como o som ambiente era
cortado (as pessoas em casa só ouviam a voz da apresentadora e a do sujeito que
dava a resposta), a turba rude e ignara não notou o que havia acontecido porque
o barulho na praça era realmente ensurdecedor.
O hoje ativista ambiental Jô Farah em companhia de seus pais
Edlúcio só percebeu o
tamanho da encrenca quando viu a Virginia Novick quase arrancar os cabelos e
depois se jogar no chão, gemendo feito uma bezerra desmamada.
A bichinha produtora
entrou em surto psicótico:
– Prende esse filho da
puta, prende esse filho da puta! – determinou para um meganha, que fazia a
segurança do cercadinho de corda.
O soldado explicou que não
podia deixar o posto.
Enlouquecida, a bichinha
produtora saiu em busca do comandante da PM, coronel Lemos, e explicou a
situação. Uns seis meganhas agarraram Edlúcio.
Imperturbável como sempre,
Edlúcio colocou uma das mãos sobre o ombro do coronel e, na maior calma do
mundo, disparou:
– Coronel, eu apenas dei a
minha opinião… Eles me pediram para falar e eu falei… Foi apenas isso!
Edlúcio foi liberado pelos
meganhas. Na mesma hora, Marcelo Dutra e Jô Farah entraram no cercadinho para
fazer “o resgate do soldado Bryan”. Como estavam posicionados próximos ao carro
de transmissão, eles ouviram quando o temperamental José Bonifácio Sobrinho, o
Boni, diretor-geral da rede Globo, demitiu a bichinha produtora do programa, ao
vivo e a cores, sob uma saraivada de palavrões.
– Te manda lá pro Ideal e
fica dentro do carro, que isso aqui vai feder a chifre queimado! – determinou
Jô Farah, entregando a chave do carro pra Edlúcio.
Demitida via Embratel pelo
todo-poderoso Boni, a bichinha produtora já havia jogado a prancheta na direção
da cabeça de Edlúcio e agora estava procurando um trinta e oito com balas
dundum para descarregar no meio do quengo daquele cabeludo abusado.
Com o coração quase saindo
pela boca, Edlúcio saiu correndo em direção à Avenida Eduardo Ribeiro,
atropelando todo mundo, desesperado como um vampiro diante de uma réstia de
alho.
A apresentadora Virginia
Novick, soltando faísca pelos olhos, começou a incentivar os presentes a darem
uma surra naquele sujeito impertinente que havia transformado Manaus na capital
nacional da infâmia. A Praça de São Sebastião estava prestes a se transformar
em uma praça de guerra.
Dentro do carro, mais
nervoso do que nunca, Edlúcio sintonizou a rádio Jovem Pan. No mesmo instante,
um locutor interrompeu a música “Rhythm Is A Dancer”, do Snap!, para dar uma
informação:
– Porra, moçada, um
boyzinho lá de Manaus acabou de fazer o doutor Roberto Marinho botar um ovo em
pé… No bloco final do programa “Você Decide!”, o cara meteu lá que é louco pela
Transamérica, pra todo Brasil escutar… Ô lôko, meu!… Nunca mais a Globo vai
fazer programa ao vivo em Manaus… Isso, se o doutor Roberto Marinho sobreviver
a essa sacanagem sem precedentes… Que muitas cabeças vão rolar na emissora, não
há a menor dúvida… Aliás, se a Transamérica precisasse fazer um comercial desses,
no mesmo programa, em nível nacional, ia gastar uns 10 milhões de dólares… Ô
lôko, meu!… O boyzinho é da pesada!
Edlúcio começou a achar
que havia se fodido. Quando Marcelo Dutra e Jô Farah entraram no carro, seu
“achismo” se transformou em certeza absoluta.
– Porra, bicho, o pessoal
da TV Amazonas está uma arara. E eles são os principais parceiros do prefeito
Amazonino Mendes. Não sei não, mas acho que só vai dar pro teu cu! – avaliou
Marcelo Dutra.
Eu e a publicitária Liduina Mendes enchendo a cara em um boteco de
Coari
No dia seguinte, no
refeitório da Oana, Edlúcio começou a ser tratado como um cão leproso. Ficou
sentado sozinho em uma mesa.
Redatora premiada e uma
das mais talentosas escritoras da cidade, a publicitária Liduína Mendes se
sentou à sua mesa e disparou:
– Porra, moleque, você
ontem botou lascando! Foi o melhor golpe publicitário que já vi na minha vida…
Parabéns!
Edlúcio, meio
constrangido, limitou-se a rir amarelo.
Dez minutos depois, Edson
Sena, o encarregado de mídia da agência, sentou-se à mesa:
– Edlúcio, cara, você é um
grande filho da puta! Sacaneou com a TV Amazonas, nossa principal parceira… Fez
uma desfeita daquela em nível nacional… Já pedi a tua cabeça pro Edmar Costa…
Você só faz merda, porra!…
Edlúcio, meio
constrangido, limitou-se a rir amarelo.
Liduína saiu em defesa do
moleque:
– Escuta aqui, bicho, você
trabalha com mídia, mas não deve entender porra nenhuma de publicidade… O que o
Edlúcio fez ontem foi um escândalo, foi um escândalo!… Ele colocou o nome da
Transamérica na casa de 80 milhões de pessoas… Foi um golpe de marketing
incrível…
Irritadíssimo, Edson Sena
se levantou da mesa e foi degustar seu café da manhã em outro canto. Edlúcio,
meio constrangido, limitou-se a rir amarelo e, algum tempo depois, já estava encafifado
no seu mocó.
De repente, chega a
secretária do Edson Gil, um dos diretores da agência, informando que ele exigia
a presença de Edlúcio na sua sala. Nervosíssimo e acreditando piamente que iria
receber sua carta de demissão, Edlúcio entra na sala:
– Pois não, doutor Edson!
– Edlúcio, esse aqui é o
doutor Alberto Santa Rosa, presidente do Açúcar Itamarati, e esse aqui é o
doutor Jaime Belizário, presidente da indústria de Brinquedos Estrela! – avisou
Edson Gil.
Aí, se virando para os
dois senhores, mais pimpão do que nunca, arrematou:
– Pessoal esse aí é o
nosso funcionário Edlúcio Castro, que ontem à noite aplicou um belo golpe de
marketing na poderosa rede Globo. Ok, Edlúcio, pode ir embora!
Edlúcio saiu da sala
achando que seu emprego estava salvo. Dessa vez, acertou na mosca – tanto que
permaneceu na agência até dezembro de 1995, quando partiu em busca de novos
horizontes.
Infelizmente, ele não
ganhou o carro da promoção. O DJ Raidi Rebelo, responsável pela emissora em
Manaus, demorou a enviar a fita VHS para a matriz em São Paulo e, quando sua
façanha chegou, as inscrições já haviam sido encerradas.
O carro importado foi dado
para uma banda de rock que excursionava pelo país com todos os instrumentos
pintados com o logotipo da emissora, incluindo o ônibus que transportava os
músicos.
Ninguém se lembra mais do
nome da banda, mas quem assistiu ao episódio “Ídolo Perdido” não esqueceu até
hoje da presepada do Edlúcio Castro. Você decide.
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