Falecido em janeiro de
1976, o impagável Neném Prancha começou sua carreira como roupeiro do Botafogo
e terminou sua vida como olheiro de futebol de praia. O ilustre cidadão era
assim apelidado por conta das mãos de 23 centímetros e dos pés de número 44.
Embora não fosse jogador
nem treinador, Neném Prancha era reconhecido como grande conhecedor de futebol.
Mas não foi nem por sua sabedoria futebolística nem por suas estranhezas –
nunca falava de seu passado e, embora fosse visto todos os dias na praia,
jamais era visto no mar – que ele ficou célebre. Foi, na verdade, pelas frases
irreverentes.
Neném Prancha foi o autor
de sentenças que ficaram marcadas ao longo do tempo, como “se concentração ganhasse
jogo, o time da penitenciária não perdia uma partida” ou “o goleiro deve andar
sempre com a bola, mesmo quando vai dormir. Se tiver mulher, dorme abraçado com
as duas”.
Ele ainda cravou frases do
tipo “pênalti é uma coisa tão importante, que quem devia bater é o presidente
do clube”, “se macumba ganhasse jogo, o campeonato baiano terminava sempre
empatado”, “quem corre é a bola, senão era só fazer um time de batedores de
carteira” e “bola tem que ser rasteira porque o couro vem da vaca e a vaca
gosta de grama”.
Aqui na taba, o maior
discípulo de Neném Prancha foi o índio piratapuia Marajara. Durante 40 anos –
do início dos anos 60 ao final dos anos 80 –, Marajara fundou, organizou ou
treinou mais de 50 times de futebol nos bairros da Cachoeirinha, Raiz,
Petrópolis e São Francisco, tendo passado por suas mãos mais de 3 mil atletas.
Com um detalhe: ele só
treinava crianças e adolescentes, nunca foi técnico de um time de adultos. E, a
despeito das maledicências e lendas urbanas a seu respeito, nunca sentou em
cadeira ocupada. Pelo contrário. Casou um monte de vezes e teve dezenas de mulheres.
Hoje, com mais de 70 anos, Marajara mora com mulher, filhos e netos no bairro
da Alvorada.
Quando o conheci, Marajara
morava em uma pequena tapera de palha nas imediações do campo do Peñarol, em
Petrópolis, e era dono do time do Canarinho, um dos adversários mais aguerridos
do Sancolzinho, o time infanto-juvenil do famoso Sancol.
Diariamente, incluindo os
dias de jogo, ele fazia uma reca de moleques – Ernani, Eraldo, Donga, Bordado,
Ferrinho, Tobias, Irineu, etc – correr do campo do Peñarol até o igarapé do
Crespo, na Raiz. Chegando lá, os moleques se banhavam rapidamente no igarapé e
voltavam correndo de volta para a sede do clube (a tapera do Marajara), onde
recebiam uma caneca de mingau de banana verde.
Como o mingau era feito
com o abominável “leite do posto” (os primeiros experimentos de leite de soja,
testados no Terceiro Mundo por conta dos acordos MEC-Usaid), metade dos atletas
era acometida de disenteria na mesma hora.
Para nós, do Sancolzinho,
que costumávamos enfrentar o Canarinho desfalcado de seus melhores atletas por
conta do famoso mingau de banana verde, era uma mão na roda.
Campo do Penãrol, o espaço sagrado do treinador Marajara
Homem de poucas luzes,
quase analfabeto, extremamente simples, Marajara comprava os equipamentos dos
times (jogo de camisas, calções e meiões) com seus próprios recursos. Nunca
recebeu uma mísera ajuda oficial, mas também não se queixava disso.
Ele era apaixonado pela
Seleção Brasileira de 1958 (que eu também considero a melhor de todos os
tempos) e sua filosofia de jogo era baseada exclusivamente na tática implantada
por Vicente Feola: ao atacar, abra os ponteiros, ao defender-se, congestione o
meio fechando a cabeça da área. Se na criação o companheiro deslocar, deverá
receber na feição, mas se outro pedir, é porque estará mais confiante ou melhor
colocado.
Portanto, ataque em leque
e defenda em funil, quem desloca recebe e quem pede tem preferência. Simples
assim.
Com o passar do tempo,
Marajara acabou por adaptar essa teoria para a cultura baré, reunindo algumas
máximas de fácil entendimento para a molecada. Assim, antes de seu time entrar
em campo, ele reunia a defesa em um canto e dava suas recomendações finais:
– O goleiro precisa ser
igual a visgo de jaca em pé de curió: pegou, não larga mais. Os laterais têm
que jogar igual para-brisa de carro: indo e vindo, indo e vindo. Os zagueiros
têm que jogar que nem mandioca braba: plantado na área o tempo todo! O volante
tem de jogar como quem tomou lacto-purga em jejum: tendo muito cuidado pra não
fazer cagada! E não esqueçam que atacante inimigo é feito cabeça de prego: tem
que levar porrada, até sumir da frente!
Depois que conversava com
a defesa, Marajara se reunia com os atacantes:
– O armador tem que
distribuir a bola igual a rabo de vaca: prum lado e pro outro, prum lado e pro
outro! O ponta direita tem que ser igual navalha Solingen em mão de malandro:
cortou pelo meio, rasga em diagonal. O ponta esquerda tem que ser que nem preá
no cio: só cruzando, só cruzando! O ponta de lança tem que jogar que nem
espartilho de puta: apertando por trás e entrando pelas brechas. O centroavante
tem que jogar igual calcinha em rabo de quenga: enfiadinho o tempo todo!
Depois da preleção com os
atacantes, reunia o time inteiro:
– Não gosto de capitão de
equipe calado. Ele tem de ser que nem cabrito entrando na faca: berrando o
tempo todo! O jogo está amarrado no meio campo? Os laterais devem se adiantar
pra fazer a tática do tatu com porco: cavar e fuçar, cavar e fuçar. Quando a
gente estiver sendo atacado, arrecua o time inteiro. E na hora do ataque é que
nem enterro de político: vai todo mundo!
Dadas as instruções finais,
Marajara fazia todos os atletas se darem as mãos e rezarem um Pai Nosso –
provavelmente pedindo a Deus para não serem goleados mais uma vez pelo
implacável Sancolzinho.
Quando a partida
terminava, tivesse seu time perdido ou não, Marajara reunia os garotos em sua
própria residência e servia refresco de mangarataia com bolo de macaxeira, tudo
custeado do próprio bolso.
Por sua dedicação ao
futebol amador, o índio piratapuia bem que merecia uma estátua em praça
pública.
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