Novembro de 1971. Tendo como técnico o gente-fina Popó, o Sancolzinho vai enfrentar o invicto Canarinho, da Boca do Imboca, no campo do Velódromo.
O campo do Velódromo media 90 x 45 metros e era, em sua maior parte, gramado.
Nas laterais do campo ainda se via o concreto armado da antiga pista de corridas de motocicletas, ciclomotores e bicicletas.
A principal estrela do Canarinho era um moleque aloirado de 15 anos, chamado Mário Gordinho Filho.
Seu pai, Mário da Cruz Gordinho, tinha sido duas vezes campeão pelo Auto Esporte (1956 e 1959) e artilheiro do campeonato estadual de 1959, com 25 gols (o 2º colocado, Pratinha, do Nacional, fez 15 gols).
Em 1957, ele havia feito 26 gols, mas ficou em 3º lugar na artilharia.
Os times amazonenses só se tornaram profissionais a partir de 1964.
Como os times eram infanto-juvenis, havia um acordo tácito de que só poderiam participar das partidas os menores de 17 anos.
No Velódromo, essa regra foi subvertida: lá, os moleques deviam passar sob um sarrafo colocado a 1,65 m do chão. Quem não derrubasse o sarrafo com a cabeça, entrava em campo.
Resultado: nosso ponta de lança Luiz Lobão, que tinha 15 anos e 1,70 m de altura, foi barrado. O zagueiro Sidão (16 anos e 1,85 m de pele e osso), nem chegou a se equipar.
Em compensação, Edmar Macaco, um caboquinho entroncado de 18 anos, mas que media apenas 1,60 m, sempre entrava em campo para defender o infanto-juvenil do Velódromo, dono do campo. Uma zona!
O time do Canarinho jogava em função de Mário Gordinho. Ele era um excelente driblador, possuía excelente domínio de bola, apurada visão de jogo e chutava com as duas pernas.
Não bastasse isso, o sacana corria feito um velocista jamaicano.
Bastava a gente se distrair um pouquinho, para o Mário Gordinho fazer fila driblando todo mundo na maior correria e só parar na cara do gol.
Apesar das defesas milagrosas do Mário Adolfo, o primeiro tempo terminou 2 a 0 pro Canarinho, dois gols do lourinho abusado.
Mário Gordinho e o
poeta Thiago de Mello no Ponto da Cultura
No intervalo, o técnico Popó resolveu apelar.
Ele chamou os zagueiros Gilson Cabocão e Airton Caju e explicou a nova tática:
– Negócio seguinte. Vocês dois vão colar no Mário Gordinho, que nem carrapato no lombo de vaca. Mas é pra colar mesmo, não é apenas pra marcar de perto, não. Pra onde ele for, vocês vão atrás, sempre colados nele. Se ele cair pra esquerda, vocês caem pra esquerda. Se ele cair pra direita, vocês caem pra direita. Se ele sair de campo pra mijar, vocês saem junto e mijam também, sempre ao lado dele. Se ele recuar pra linha intermediária, vocês vão atrás do sacana, sempre colados nele, fungando no cangote, pegando na bunda, irritando mesmo. Na hora em que ele receber a bola, se joguem em cima dele, agarrem pela cintura e levem o cara pro chão. O Mário Gordinho não pode mais tocar na bola, falou?...
A presepada deu certo. Com 15 minutos de jogo, Mário Gordinho já havia sido levado pro chão umas 15 vezes, como se fosse o quarterback do Washington Redskins sendo encaixotado pelos armários defensivos do Denver Broncos.
Numa dessas quedas, ele acabou sofrendo uma distensão na coxa e pediu pra sair. Sem seu melhor jogador, o Canarinho se transformou em um barco sem quilha.
O inspirado Áureo Petita (2 gols de placa) e o estabanado Kepelé (2 gols de cabeça) garantiram a goleada.
O Áureo saiu de campo como o melhor jogador da partida e com convite para jogar em pelo menos uns 12 times da Liga do Velódromo.
Um cartola do Cruz Vermelha chegou a oferecer uma grana preta pelo passe do nosso meia armador, numa época em que a gente jogava apenas pela simples diversão.
Ninguém aceitou, claro. Ainda não éramos mercenários.
Mário Gordinho jogando
profissionalmente pelo Fast Club, no Vivaldão
Os dirigentes da Liga do Velódromo (era um dos campeonatos infanto-juvenis mais concorridos do bairro) só faltaram nos implorar de joelhos para que participássemos da disputa oficial do próximo ano.
A gente topava desde que a idade dos atletas fosse atestada por um documento de identidade e não pela passagem do atleta por baixo de um sarrafo.
Devia ser um campeonato com muitos “gatos” (moleques que diminuem a idade para continuar participando das divisões inferiores), já que eles sequer aceitaram discutir o assunto.
Quem perdeu foram eles, privados de acompanhar a ascensão do fabuloso Áureo Petita, o melhor jogador da Cachoeirinha de todos os tempos.
Apesar de ter sido caçado em campo, o brilhante Mário Gordinho se transformou em nosso amigo de infância e, mais tarde, jogou profissionalmente pelo Fast Club e Nacional, entre outros times da cidade.
Em 1974, seu time, o Areal, despachou o Murrinhas do Egito na partida final da chave “Pelamor de Deus” e acabou em terceiro lugar no Peladão daquele ano, após perder um jogo épico para o Bulbol na semifinal da competição.
Em meados dos anos 70, eu e ele chegamos a jogar juntos no Setembro Negro, em partidas amistosas no campo do Penarol, e continuamos amigos até hoje. Não é pouca porcaria.
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