Por Rafael Galvão
Ah, Adriano… A primeira reação que tive ao ver seu comentário foi pensar: como alguém pode não gostar de Jack Daniel’s? Eu reconheço em todos o direito a seus gostos. Mas não admito que alguém ouse não venerar a Lady Day, e não reconheço que se não goste de Jack.
Mas é John Daniel’s para você, Adriano. Cuidado aí com a intimidade. Jack só se deixa chamar por esse nome por quem realmente gosta dele. Por quem o conheceu aos poucos, em noites longas em que risos se misturaram a lágrimas; mas principalmente por quem ele conhece de verdade, por aqueles de quem ele conhece a alma. Não vá afetando uma intimidade que você não tem nem quer ter. Mister John Daniel’s.
Há umas poucas coisas na vida que precisam de ritual. Um ritual simples, porque rituais complicados tiram a alegria do viver, e os prazeres se perdem na necessidade de seguir os passos dos outros. Jack sabe disso. Ele não lhe diz o que fazer. Sequer coloca a mão no seu ombro, porque sabe que a sua dor não passará com isso; em vez disso, apenas fica do seu lado, calado, olhando para você. É só disso que você precisa.
Aquele que lhe apresento como John Daniel’s só pode ser entendido por quem sabe que se fechar os olhos pode ter pesadelos. Sonhos ruins, perversos, que lhe farão acordar com medo, procurando um ar que lhe pareceu faltar. Por quem, como um Ebenezer Scrooge atormentado pelo passado, está sempre sujeito a fantasmas que chicoteiam com lembranças que você queria enterradas.
Existem poucas coisas que se deve fazer sozinho nesta vida. Uma delas é deitar em um sofá no escuro, só você e os milhões de demônios que atormentam a sua consciência, que lhe fazem ter calafrios pela canalhice que você cometeu um pouco antes, pela mulher que você machucou, pelo amigo que você ofendeu.
É só ali, naquele sofá, que você pode entender por que sabe que vai magoar uma mulher, sabe que é errado, ao mesmo tempo em que admite resignado que não conseguirá evitar.
E nessas horas, nesse sofá no escuro, só duas companhias lhe são permitidas. Uma delas é Billie Holiday ou Chet Baker; você pode escolher qualquer um dos dois porque eles, como ninguém mais, sabem cantar o que se passa em sua alma.
Quando Chet com voz tão pequena canta I Fall in Love Too Easily, ou Billie que não tem mais esperanças destroça o seu coração com Solitude, então você entende, e não são necessárias outras palavras.
Só eles sabem quem você é, só eles olham para você sem raiva, sem pena ou sem censura. Certo, eles dizem “mas que merda você fez, hein?” Mas dizem também “tudo bem, eu também fiz.”
E então, por alguns instantes, você sente que não está sozinho no mundo; que alguém consegue entender tudo aquilo que passa tão rápido por sua cabeça, tão rápido que nem você consegue compreender.
Só eles podem traduzir, em palavras que dizem mais do que parecem dizer, aquilo que você jamais teria coragem de falar. E mesmo assim apenas naquele momento, num sofá no escuro, apenas você, a música, a fumaça azulada do cigarro e o perfume que vem de um copo.
Esse copo de Jack Daniel’s é a sua outra companhia, Adriano, e só ela. Cada dose tem que ser dupla; se você vai colocar gelo que seja apenas o suficiente apenas para esfriar. Só isso. Mais nada.
Ninguém para falar que essa merda foi envelhecida em barris de carvalho no cu da Escócia. Ninguém para vir com viadagem sobre a qualidade da água das highlands. Ninguém para encher seu saco. Só você, a música e seu copo.
E os seus demônios.
Jack é diferente, Adriano. É diferente, por exemplo, de um Johnny Walker com roupinha de nojentinho dizendo em falsete keep walking, keep walking. Johnny é um filhinho de mamãe inglês que anda por diletantismo, porque cansou do Bentley com motorista, um maricas que nunca precisou pegar um ônibus na vida.
Jack é alguém que sofreu e fez sofrer, que desaba na mesa do boteco depois de chorar por ela, e que se conseguir voltar para casa vai voltar a pé, mas não porque tem que “keep walking”: vai voltar a pé porque é assim que as coisas são.
Johnny se acha grande, se acha o dono do mundo. Jack, e todos nós, sabemos que porra nenhuma interessa, que é tudo uma grande brincadeira, e que a gente às vezes chora enquanto ela não acaba. Sabemos que não somos nada, mas que nossas pequenas tragédias são enormes.
Só Jack entende o que há de inexorável nesta vida; as suas tantas promessas não cumpridas, os compromissos a que você não compareceu, só ele entende que você mente sendo sincero. Jack sabe; Johnny não fala nossa língua.
Jack Daniel’s é para quem se arrepende. Não acredite em quem diz não se arrepender de nada nesta vida, porque esse é um idiota, não merece sequer sentir o cheiro do milho. Ou então, pior, não viveu, tem o orgulho néscio de nunca ter errado porque só tomou as decisões certas na vida e não sabe de nada, de nada. De nada. É só outro idiota. E de idiotas o mundo está cheio, é contra eles que Jack nos protege.
Só não gosta de Jack Daniel’s quem nunca fez nada errado; quem nunca se arrependeu de nada. Quem nunca viu uma mulher chorar na sua frente, por sua causa, e só sentiu enfado; quem nunca jurou um amor que não sentia por causa de um rabo maravilhoso e peitos que precisavam ser engolidos por sua boca; só não gosta de Jack Daniel’s quem nunca puxou os cabelos dela sabendo que ela ia gostar, quem nunca deixou o seu colo marcado de vermelho como quem diz você é minha. Só não gosta de Jack Daniel’s quem nunca ouviu “desse jeito você acaba comigo”.
O resto não vale a pena. O resto é Logan, nome que não merece sequer um sobrenome, bastardo que é.
Por isso não, Adriano. Jack Daniel’s, não. É mister John Daniel’s para você. Marque hora com antecedência. E então pode falar mal o quanto quiser, porque ele não vai se importar.
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