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quinta-feira, dezembro 12, 2019

Kepelé e o nome das coisas



Kepelé, Gilson Cabocão e Simas Careca Selvagem no Canto do Fuxico

O carnaval de 1964 foi marcado pelo surpreendente sucesso do samba-coco “Bigorrilho”, de Sebastião Gomes, Paquito e Romeu Gentil, gravado por Jorge Veiga.

Muito mais coco do que samba, a composição é baseada em um tema folclórico, aproveitando também o verso “trepa Antônio, siri tá no pau”, do samba “O Malhador”, de Pixinguinha, Donga e Mauro de Almeida, gravado por Bahiano em 1918.

No antigo samba a expressão “siri tá no pau” era entoada por um corinho, em resposta a cada verso cantado pelo Bahiano: “Maiadô samba / E samba com fervô / Quem maia sabe samba / Quem samba sabe gozá / Maiadô danado / Samba diante de mim, quero vê / Ó maiadô cansado / Tu ficará sem querê me benzê / Mulatinha diacho / Faz o teu passo bem baixo / Samba bonito (siri tá no pau) / Senão eu grito (siri tá no pau) / Passa no bico (siri tá no pau) / Samba mardito (siri tá no pau) / Sambô, gostô (siri tá no pau) / Dança, feitô (siri tá no pau) / Mas não falhô (siri tá no pau) / Ô maiadô (siri tá no pau) / Ó trepa Antonho (siri tá no pau) / Samba demonho (siri tá no pau) / Samba no sonho (siri tá no pau) / Não me envergonho (siri tá no pau)” e assim por diante.

Além do ritmo, que enseja aos dançarinos uma coreografia original, concorreu para a o sucesso de “Bigorrilho” uma boa dose de malícia disfarçada na aparente ingenuidade da letra.

O êxito de “Bigorrilho” ultrapassou o período carnavalesco, tornando-se por algum tempo número obrigatório nos shows de Jorge Veiga: “Lá em casa tinha um bigorrilho / Bigorrilho fazia mingau / Bigorrilho foi quem me ensinou / A tirar o cavaco do pau / Trepa Antônio / O siri tá no pau / Eu também sei tirar / O cavaco do pau / Dona Dadá, Dona Didi / Seu marido entrou aí / Ele tem que sair / Ele tem que sair / Ele tem que sair”.

Na verdade, “bigorrilho” é um termo nordestino para designar aqueles meninos de pais ainda vivos, mas muito pobres, que são dados para serem criados por famílias mais abastadas.

Em troca de casa, roupa e comida, os “bigorrilhos” fazem pequenos serviços domésticos.

A dona Magnólia Figueiredo tinha dois “bigorrilhos” – Kepler Evandro (aka “Kepelé”) e Gustavo Souza (aka “Tibica”) – que viviam se estranhando para saber quem era mais útil nas tarefas domésticas.

Kepelé levava uma desvantagem: era analfabeto.

Em virtude disso, nas tarefas mais difíceis, tipo levar uma lista de compras para adquirir produtos em uma taberna, ele era sempre preterido em favor do Tibica, que tinha o primário completo.

Penalizado da situação do moleque, Mário Adolfo resolveu alfabetizá-lo.

Ambos tinham a mesma idade, 15 anos, mas Mário Adolfo já estava terminando o ginasial enquanto Kepelé mal sabia o nome das letras do alfabeto.

Munido de um caderno de desenhos, caneta e muita boa vontade, Mário Adolfo partiu para o método audiovisual: desenhava um objeto, grafava as letras embaixo e obrigava Kepelé a repetir com ele o nome das coisas.

Mário Adolfo desenhou uma bola e escreveu embaixo “bola”. Aí, apontando letra por letra, começou:

– Bê-obó-ele-alá!

– Bola! – respondeu Kepelé.

Mário Adolfo vibrou:

– É isso aí, meu garoto, é isso aí!

Mário Adolfo desenhou um dado e escreveu embaixo “dado”. Aí, apontando letra por letra, começou:

– Dê-adá-dê-odó!

– Dado! – respondeu Kepelé.

Mário Adolfo vibrou mais uma vez:

– É isso aí, meu garoto, é isso aí!

Mário Adolfo desenhou um olho e escreveu embaixo “vista”. Aí, apontando letra por letra, começou:

– Vê-ivis-tê-atá!

– Olho! – respondeu Kepelé.

Mário Adolfo desistiu de alfabetizá-lo.

Kepelé estava pouco se lixando para a vocalização correta do nome e sua correspondência com as letrinhas enfileiradas: ele simplesmente nomeava o desenho de acordo com a sua compreensão.

Ah, moleque!

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