Por José Carlos Fernandes
Eu somava 9-10 anos de idade quando aconteceu a minha “primeira vez com O Pasquim”. Foi em 1977. Meu pai – um português que saiu aos seus patrícios e encontrou alegria atrás de um balcão – tinha uma banca de jornais e revistas no bairro Água Verde, em Curitiba.
Do lado do caixa – seu posto de comando – instalou umas traquitanas de ferro, feitas por ele mesmo, nas quais pendurava material que a qualquer momento poderia ser apreendido pela Polícia Federal. O local era estratégico para amenizar o impacto da correria, a cada batida dos emissários do governo, cena comum em tempos de regime militar.
Mesmo com o fim da censura prévia, em 1975, ele pendurava ali os jornais Opinião, Movimento e, claro, O Pasquim, presos com grampo de roupa para ninguém bisbilhotar.
Usava das mesmas estratégias para as revistinhas pornôs da editora Grafipar, como a Peteca, a Playboy dos paranaenses – vendida em herméticos saquinhos plásticos. E para os livros de bolso eróticos assinados por Cassandra Rios – também embalados quase que a vácuo. Ao lado desses “malditos” todos, lembro de ver as edições nacionais da obra de Dalton Trevisan.
Ocorreu que naquela ocasião não se falava de outra coisa no Brasil senão no assassinato da socialite Ângela Diniz, por seu companheiro, Doca Street, ocorrido em dezembro de 1976. Manchete, Cruzeiro, Fatos & Fotos – parecia não haver outro assunto senão o novelão trágico que vitimou a “Pantera de Minas”, como Diniz ficou conhecida.
Na capa de O Pasquim, a chamada não deixava barato: “Veja Ângela Diniz nua, na página 6”. Fiquei curioso – e quando o pai se exilou no banheiro, arranquei o grampo de roupa e procurei a matéria. Foi quando tomei um tabefe, não do dono da banca, mas dos editores do jornal. Era uma “pegadinha”, escrita mais ou menos assim: “Seu sem vergonha, a mulher morre com um monte de tiros e você vem aqui para vê-la sem roupa”.
Esse era O Pasquim. E olhe que não estava na sua melhor fase. De meados dos anos 1970 em diante, o mais célebre jornal nanico brasileiro em todos os tempos acumulava desventuras em série. Tinha provado o cálice amargo da censura mais de uma vez, o que lhe cobrava com juros no desempenho comercial; via seus membros se acotovelarem, em meio a rusgas que o tempo não apagou, pondo no ringue brizolistas e os demais; driblava os credores e assistia à queda livre das tiragens.
Recuperou-se, em parte, ao criar em 1974 a editora Codecri, boa de vender livros. Mas não houve milagres. Dos 200 mil exemplares dos anos de ouro, passou a amargar 40 mil semanais, até beijar a lona no final da década de 1980, com edições modestas, de 3 mil exemplares e cada vez mais distantes uma da outra. Ao encerrar as atividades, o que mais se ouvia é que O Pasquim devia ter imitado Greta Garbo, jogado a toalha quando se via no auge e saído aos gritos de “bravo”.
Mas o palpite estava errado. Na prática, O Pasquim nunca morreu. Parou de circular, mas jamais deixou de ser citado, na maioria das vezes com reverência. A começar pela trupe que o produziu, fazendo o melhor do jornalismo e do humor brasileiro em tempos de ditadura – a dizer: Paulo Francis, Ivan Lessa, Millôr Fernandes, Sérgio Cabral (o pai), Henfil e Jaguar...
A lista é longa e um luxo, passando pelo controvertido Tarso de Castro – cuja gestão regada aos melhores uísques sacolejou a contabilidade daquele misto de empresa, cooperativa, sociedade alternativa e clube de amigos. Ou “patota”, como se autodenominavam, unida em torno do “jornaleco”, substantivo de preferência geral, obediente à regra magna: avacalhar.
Reza a lenda que a cada nova crise financeira, mudava-se o estatuto da casa, num sobe e desce tão anticorporativo que ficou difícil sustentar a tese de que O Pasquim foi fechado pela ditadura. O AI-5 ajudou, é fato, mas se trata de um caso clássico de autossabotagem.
Em prol da tese da imortalidade, some-se o fato de que a maneira de fazer jornalismo no Brasil ficou marcada pelo antes e depois de O Pasquim. Não por menos, seus santos protetores eram o Barão de Itararé e Sérgio Porto, mestres na arte de demolir catedrais na base do sarro. O estilo coloquial – como uma fala – deu um pé nas afetações praticadas de forma “democrática”, nos piores e nos melhores programas de rádio e tevê.
A linguagem empostada, à Repórter Esso, pairava também nos jornais impressos, que ainda tropeçavam no uso das regras de elegância exportadas do jornalismo norte- -americano, no final dos anos 1940.
“O Pasquim tirou as aspas da imprensa brasileira”, declarou certa vez Ivan Lessa, diretamente de seu autoexílio londrino, ao se referir ao estilo direto e divertido do hebdomadário – como um dia se falou.
O jornaleco também colocou asteriscos – a exemplo dos usados para sinalizar os palavrões que saíram feito confete da boca da atriz Leila Diniz, na famosa entrevista da edição 22, no final de 1969. Some-se à receita o uso divertido das expressões como “epa” e “oba”, cuja variedade de sentidos se encarregava de dizer tudo com míseras três letras.
Em miúdos, não se deixou de, em alguma medida, copiar O Pasquim. Nada foi mais contracultura, contra a cultura da imprensa, inclusive. Atingidos sem dó por tanta personalidade, os jornalões tiveram de encarar a notícia encharcada de cinismo e hedonismo. Alguém era capaz de entrevistar do colunista Ibrahim Sued a dom Hélder Câmara, sem cair do salto. Mais. Aprendeu na marra a falar palavrão. Melhor, aprendeu a falar.
Uma entrevista à moda do jornal ipanemense, por exemplo, permite a participação de três entrevistadores, perguntas indiscretas e edição ligeira, de modo a levar o leitor para dentro da cena e do modo de dizer, para alegria dos analistas de discurso e de conteúdo.
Se um título de matéria em qualquer jornal ou revista é bem-humorado, outra coisa não fez senão “beber n’O Pasquim. É imitado. E inimitável. Um jornal de chargistas – um Charlie Hebdo tropical.
Encontrar um exemplar para saber como era, pelo visto, nunca constituiu uma dificuldade: num sebo perto de você sempre tem um exemplar à venda, empacotado, mas não mais pela censura. Quem tem um exemplar, cuida.
Houve casos de facilitações flagrantes – no início dos anos 1990, a jornalista Valéria Prochmann, então diretora da Biblioteca Pública do Paraná, comprou uma coleção completa para pesquisa. A partir de 2006, para alegria geral da nação, a editora Desiderata lançou três livros com os melhores momentos d’O Pasquim. Pura ironia pensar que tudo aquilo nasceu para ser um jornal do bairro de Ipanema.
Agora a coleção estará toda na internet – à disposição de quem não viu e não viveu nos anos do chumbo, ou nem faz ideia da trabalheira que dava fazer rir debaixo de cassetetes. O beneplácito é da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e não tem cortes, o que deve servir de pasto para pesquisadores.
Não há incursão à imprensa brasileira que não contemple O Pasquim. Melhor, difícil não ilustrar essa história sem recorrer a alguma página dentre as muitas antológicas produzidas pelos editores — a da travesti Rogéria em poses de Monalisa, por exemplo. Ou a provocação machista aos paulistas, chamados de “bichas”, numa blague alimentada pela velha contenda entre Rio de Janeiro e São Paulo.
Não raro, o julgamento dessas proezas se mostra extemporâneo, o que é uma solene sacanagem. Difícil um jovem de hoje que não se horrorize, senão com o palavreado, com o sexismo típico dos garotões que conduziam a redação.
Em definitivo, O Pasquim era incorreto aos olhos de hoje em dia, mas fiel ao gênero satírico, bebido na fonte de Sade e Voltaire. Melhor não bani-lo sem considerar que forneceu oxigênio à nação em boa parte dos 21 anos da mais escura noite que atravessamos. A gente lhe deve respeito, mesmo quando O Pasquim errava a mão.
De tudo o que se escreveu sobre o jornal, nada se equipara ao superlativo Jornalistas e revolucionários: nos tempos da imprensa alternativa, do pesquisador Bernardo Kucinski. A obra teve duas ruidosas edições. E ainda que faça um apanhado da nata da imprensa nanica surgida a partir de 1964 – um conjunto de aproximados 300 títulos a partir da revista Pif-Paf, de Millôr Fernandes – é n’O Pasquim que o autor faz suas melhores embaixadinhas. Explico.
Kucinski é de esquerda e seu objeto de estudo um produto fidedigno da então chamada “esquerda festiva”, “esquerda caviar”, “esquerda pornográfica” ou “desbunde”. O termo é a gosto do freguês, e todos autoexplicativos.
K. poderia ter lá suas questões paralelas com uma equipe formada por sujeitos geniais, mas que estavam a léguas do espírito espartano dos comunas de carteirinha, em geral desconfiados daquele deboche regado no caldo da Inteligência. A turma fazia festa, e muita, nem sempre levando a acreditar que aquilo era revolução.
Mas Jornalistas e revolucionários não se nutre de preconceito. É preciso. Evita duas cascas de banana: o ressentimento dos que viram em jornais undergroud sérios, como Movimento e Opinião, muito mais bravura; e a mitificação. Reconhece que o O Pasquim promoveu o que de melhor se podia fazer na ocasião, na maior parte dos casos: o riso. O humor ridicularizou o poder, e aí reside o grande mérito do jornalzinho.
Em um dos documentos mais marcantes sobre o jornal, a série de vídeos Resistir é preciso, produzida pelo Instituto Vladimir Herzog, o cartunista Ziraldo conta em vídeo algumas das muitas historietas sobre O Pasquim. É genial. Quem despachava as edições para a censura era ninguém menos do que Juarez Paz, pai de Helô Pinheiro, inspiradora oficial da canção “Garota de Ipanema”.
Descrito como bonitão, praieiro e pavio curto, fazia o papel do Santo Ofício ali mesmo, na praia, ou numa garçonière. Ralhava vez ou outra diante das piadas que não entendia. Alertava que não toleraria gozação com cardeais e generais – ele mesmo ocupava patente de general no Exército –, mas privava a turma da redação de passar por um beija-mão insuportável, corredores do poder adentro, para conseguir liberação. Não gozou de 100% de liberdade, talvez nem 80%, como se podia conferir até na banquinha do seu Fernandes, na Água Verde, volta e meia visitada pelos agentes. Mas que sambou, sambou.
É como se cada personagem que passou pela redação d’O Pasquim fosse um livro. Estava lá a jornalista Marta Alencar, uma das únicas mulheres no meio do homerio. O ratinho Sig, invenção de Jaguar em homenagem a Sigmund Freud. As cartas aos leitores respondidas por um doidivanas Ivan Lessa. A resistência da cambada toda ao feminismo – por temer que acabasse com o romantismo. O personagem fictício que circulava pela redação. Tinha nome – Pedro Ferreti. Era citado, escrevia cartas e nunca existiu. E explicar isso para a ditadura, quando procurou o sujeito, para prendê-lo.
(*) José Carlos Fernandes é jornalista e professor universitário. Leciona na Universidade Federal do Paraná e escreve crônicas semanais para o jornal Gazeta do Povo.
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